
“Bem”, o Mário começa sempre da mesma maneira, acho graça ao modo como coloca as mãos em oração no seu esforço de concentração, “ a primeira questão que se coloca sobre a origem da Vida é perceber se esta se forma espontaneamente hoje ou não. Claro que vocês já sabem que a Vida não se forma espontaneamente na Terra actualmente, mas não se esqueçam de que foi preciso chegar a essa conclusão. Até recentemente pensava-se que a vida surgia por geração espontânea. Quem primeiro o contestou terá sido Francesco Redi, no sex XVII, iniciando uma polémica que só terminou no sec. XIX, quando Louis Pasteur fez uma série de experiências na linha das que Redi tinha feito. Ora o que é que podemos concluir do facto de a Vida existir mas não se formar espontaneamente hoje?”
“Que a Vida vem do espaço, como diz o Fred Hoyle?”
“O Fred Hoyle e não só Luisa, essa ideia é anterior a ele, a Panspermia e a teoria Cosmozónica propuseram que viesse na forma de esporos; Fred Hoyle propôs a hipótese das bactérias e vírus, não só como explicação para a origem da Vida na Terra mas também para a sua evolução. Mas reparem que essa hipótese não tem grande interesse do ponto de vista da Ciência, pois apenas remete o problema para outros locais do Universo. A Ciência é uma metodologia de investigação e, nesta altura, não podemos investigar como a Vida se pode ter formado noutros lados. Essa hipótese pode interessar à Filosofia, pode ser verdadeira, mas não interessa à Ciência porque a metodologia científica não lhe pode ser aplicada com os conhecimentos actuais.”
“Agora é que me estás a baralhar! Então pode ser verdade mas não interessa à Ciência? A Ciência não busca a verdade sobre o Universo?”
“Claro que busca! Mas dentro da sua metodologia e recursos. A Filosofia também busca a verdade, com outra metodologia. A própria Teologia não deixa de ser uma busca de Verdade. Minha cara Luísa, o Pensamento busca incessantemente a Verdade, mas usando diferentes caminhos ou metodologias. O trabalho do Fred Hoyle, que tão bem expuseste, pertence ao campo da Filosofia porque extravasa as condicionantes do método científico mas não do filosófico”.
“ Mas ele era um cientista...”
“Claro! Ora essa! O pensamento não tem de estar prisioneiro de uma metodologia. O Poincaré era um matemático e no entanto foi, para mim, talvez o maior filósofo de todos os tempos!”
“Esse não conheço”, Luísa ri-se
“Bem, não nos dispersemos, que mais hipóteses podemos fazer?”
“Que a Vida foi criada por um Deus?”, a Ana com ar muito desconfiado, de quem não está a perceber onde o Mário queria chegar.
“Bem, Ana, e como é que esse Deus fez a Vida? Os átomos tiveram de se juntar para formar as células, não é? Ou então dizemos que a Vida apareceu porque Deus quis, sem mais explicações, e estamos novamente fora da metodologia científica. Nota, não afirmo que não tenha sido um Deus a criar a Vida, só digo que também não podemos aplicar a metodologia científica a essa hipótese.”
“Então, tu queres hipóteses às quais a metodologia científica possa ser aplicada, é isso?”
“Exactamente. Ou seja, hipóteses que possamos investigar, verificar.”
“Queres, portanto, uma hipótese em que a Vida tenha origem na Terra, sem intervenção exterior, e compatível com o facto de ela já não se criar actualmente... é isso?”, a Luísa com aquela pose direita que toma sempre que decide encarar um assunto com seriedade.
“Isso!”
“Estou a lembrar-me do que o Jorge já disse... as condições da Terra seriam diferentes no início; as de então seriam as adequadas ao aparecimento da Vida, e as actuais inadequadas...”
“Isso mesmo. As condições iniciais da Terra eram muito diferentes, independentemente da teoria do Jorge, a composição da atmosfera seria diferente, a temperatura era algo mais alta”. Não temos vestígios que nos digam com era a atmosfera antes do aparecimento da Vida, mas o russo Alexandre Oparin fez, em 1924, a primeira análise consistente do assunto, concluindo que para ser possível a geração dos compostos elementares da vida a atmosfera deveria ser redutora, ou seja, sem Oxigénio. Ele analisou como poderiam esses compostos ser produzidos no ambiente inicial e como se poderiam juntar para formar uma célula. O seu trabalho é a base de todos os trabalhos posteriores.” Mário faz uma pausa, não sei se espera que comentemos algo. Luísa decide-se:
“Mas não foi um tal Miller que fez uma experiência que produziu esses compostos?”
“Foi, ele verificou que nas condições previstas por Oparin efectivamente se geravam os compostos previstos. Na altura isso foi considerado a prova que a Vida se tinha assim gerado. Mas foi sol de pouca dura.”
“O que é que queres dizer com isso? A experiência estava errada?”
“Nada disso. O que acontece é que depois verificou-se que isso é muito fácil de conseguir numa qualquer atmosfera que contenha os elementos necessários e se disponha de uma qualquer fonte de energia, como descargas eléctricas, radiações, até ondas sonoras. Até se descobriu esses compostos em meteoritos, sinal de que podem ser produzidos mesmo em condições extremas e não de que há vida noutros lados.”
“Portanto, não há nenhuma razão para pensar que a Vida possa ter surgido espontaneamente nos primórdios da Terra?”
“Ahh, isso há! Toda a estrutura da Vida espelha isso. Reparem, quando algo é fabricado para uma função, são escolhidos os elementos mais adequados. Não se fazem os motores dos automóveis com barro, não resultaria, fazem-se com um metal porque é o material mais adequado. E também não se constroem com pecinhas como um Lego, os seus componentes são especificamente desenhados para a função e construídos com os materiais mais convenientes, não é verdade?”
“Sim”, assentimos os três.
“Mas com a Vida nada disso se passa. Por um lado, os elementos reactivos mais abundantes do Universo são também os mais abundantes na Vida, o que está de acordo com a possibilidade de a Vida se ter originado por organização espontânea; por outro lado, a Vida usa uma enorme variedade de estruturas mas construídas com um número reduzido de tipos de blocos, ou seja, de compostos elementares, a que se chama monómeros. Isto é o que seria de esperar num processo onde esses blocos fossem produzidos em grandes quantidades numa primeira fase e, numa segunda fase, se pudessem associar formando polímeros, num vasto número de combinações.”
“Pelo que disseste, a primeira fase não levanta problemas...”
“Pois não, a segunda é que levanta. Diversas hipóteses têm sido analisadas, nomeadamente uma em que argilas fariam parte do processo de polimerização. Sidney Fox conseguiu obter alguns polímeros mas teve de recorrer a condições difíceis de ocorrer naturalmente, nomeadamente a temperaturas da ordem dos 200º C. Ainda ninguém conseguiu um modelo satisfatório da segunda fase.”
“Mas afinal o que é que sabemos?”, a Luísa meio desiludida.
“Perceber a Vida e a sua origem é um problema tremendamente complexo; temos de ter a humildade de perceber que não há resposta fácil. O que temos de fazer é investigar, ir percebendo como funciona a Vida e, à medida que o vamos fazendo, melhores hipóteses podemos ir construindo sobre como se originou. O facto de sabermos
1 - que se compõe maioritariamente de elementos abundantes no Universo,
2- que se organiza como um Lego e
3 - que já não se cria,
são já três importantes pistas. E temos várias hipóteses sobre como se poderiam ter formado diferentes estruturas da célula, nomeadamente as membranas. Se quiserem saber detalhes é só irem à Net. Mas não temos ainda nenhuma hipótese que eu considere satisfatória sobre como foi possível a formação das longas cadeias dos polímeros e muito menos um resultado experimental desta 2º fase do processo de construção da Vida.”
“Jorge, e tu? Não disseste que tinhas coisas a dizer a este respeito?” Luísa parecia algo desiludida com a franqueza do Mário.