sábado, abril 28, 2012

O Mistério das Crises



A evolução das sociedades humanas segue um padrão sistemático: começa por uma associação de pessoas que têm de juntar esforços para sobreviverem; para cada um, é óbvio que a melhor forma de melhorar as suas condições de vida nesta fase inicial é agir em função do interesse colectivo.

Depois, começando a sociedade a ter riqueza, a organizar-se, surge a desigualdade de riqueza e de poder; e a desigualdade tende a crescer imparavelmente porque os mais ricos têm mais capacidade de enriquecer do que os outros.

A princípio, isto não é um problema, porque o enriquecimento da sociedade chega para enriquecer todos; mas como a taxa de crescimento dos ricos é superior à taxa média, ou seja, do PIB, a taxa de enriquecimento da maioria das pessoas torna-se cada vez mais pequena; por outro lado, por várias razões, a taxa de crescimento do PIB também abranda em função do crescimento da desigualdade. Portanto, dois fenómenos ocorrem: a taxa de enriquecimento dos ricos é crescente e a da sociedade é decrescente a partir de certa altura.

Destes dois efeitos chega-se fatalmente à situação em que o enriquecimento de uns, por ser maior em valor absoluto do que o enriquecimento da sociedade, acaba por implicar o empobrecimento de outros; então, a desigualdade dispara até ao ponto em que todos, menos os mais ricos dos ricos, atingem o limiar da sobrevivência. Este meu post de 2008 mostra isso, tal como o vídeo acima. Aí, a sociedade estagna, fica no seu ponto extremo, em que uns poucos controlam a quase totalidade da riqueza produzida pela sociedade e os outros subsistem no limiar da sobrevivência e da dignidade, ou abaixo disto.

A Idade Média foi isto, a sociedade dividida entre os senhores e os servos.

Esta situação é nefasta por duas grandes razões; uma é que produz a estagnação ou mesmo o retrocesso da sociedade e a outra é que este não é certamente o tipo de sociedade desejado pela maioria das pessoas, não se assemelha em nada a um “paraíso na Terra”, antes a um “castigo de Deus”.

Quando ocorre uma súbita abundância, seja devida a uma conquista, a um período de melhor clima, a um progresso tecnológico, que abre uma janela de crescimento da sociedade, alguns dos pobres podem ficar menos pobres, originando o aparecimento da chamada “classe média”; também as guerras, ao produzirem maciça destruição, abrem no pós-guerra uma oportunidade de crescimento que decorre da reconstrução do que foi destruído e fortalecem por isso a classe média. Quando se esgota essa janela de crescimento, a classe média volta a desaparecer. De vez em quando, aqui e ali, os pobres recorrem à força do seu número e fazem uma revolução, que momentaneamente repõe alguma igualdade na sociedade, mas logo se reinicia o mesmo processo infernal.

Portanto, compreendamos bem o processo: o estado para que tende uma sociedade humana em que cada um age em função do seu interesse imediato é caracterizado por existirem uns poucos que detêm a quase totalidade da riqueza produzida e os outros serem mais ou menos escravos desses. Como os ricos não podem coexistir, porque cada um quer sempre ser mais rico, acabam por estabelecer “territórios”, que podem ser geográficos ou por áreas de actividade. Portugal nasceu porque um tal Afonso Henriques quis ser mais rico e poderoso do que o que lhe estava destinado. 

Os ricos não são melhores nem piores do que os pobres, são simplesmente pessoas cujo objectivo na vida é ser rico ou poderoso e o conseguiram. Apenas nos períodos em que uma sociedade é capaz de crescer surgem as “luzes da civilização” porque então existem pessoas que podem sobreviver sem estar inseridas na luta de ratos, uns contra os outros, pelo enriquecimento ou pela sobrevivência.

Na Natureza as coisas parecem não ser muito diferentes, ocorrendo saltos evolutivos a seguir a catástrofes que eliminam grande parte dos seres vivos e deixam espaço para os sobreviventes não terem de disputar a sobrevivência uns contra os outros - não parece ser a adversidade que gera a evolução mas a oportunidade a seguir à adversidade.

Portanto, não tenhamos ilusões: uma sociedade humana entregue a si mesma desemboca fatalmente nesse quadro. Apenas a existência de um poder que permita que as pessoas ajam em função do interesse colectivo pode conduzir a uma sociedade melhor; o enfraquecimento ou incompetência desse poder determina a fatal evolução acima descrita. Esse poder é o poder Político. Como é óbvio, o poder Político tem de estar sempre acima do poder dos ricos, ou seja, do poder do Mercado.

Como é óbvio também, não é isso que acontece na Europa. Compreender como chegámos a isto é importante para percebermos como podemos corrigir a situação. Disso falarei no próximo texto.

quarta-feira, abril 11, 2012

O Titanic Europeu


Desde que começou o corrente milénio que o mundo ocidental anda em crise. Ou seja, EUA e Europa, pois no resto do mundo não há crise, apenas os problemas do costume.


Apontam-se causas para aqui e para ali, culpam-se estes e aqueles... os pobres culpam os ricos por enriquecerem demais, os ricos culpam os pobres por "viverem acima das suas posses", todos culpamos a corrupção que por aí grassa... o ruído do costume quando ninguém sabe o que se passa. Como todos têm culpas, é fácil apontar o dedo; mas será que está aí a verdadeira causa do problema?

Hoje ainda não está esclarecida a causa da crise de 1929, quase um século depois; diferentes explicações estão ainda em discussão, as duas mais usuais sendo
 a) tratou-se de uma crise de superprodução devido ao aumento dos ganhos de eficiência e quebra no boom de produção que se deu para a reconstrução da Europa a seguir à primeira grande guerra, conforme previsto por Ford e Keynes;
 b) deveu-se à política anti-inflacionista da Reserva Monetária dos EUA.

Ambas estas eventuais causas podem também ser apontadas à actual situação europeia (as exportações podem entrar em crise devido ao fim da globalização económica, com os países em todo o mundo a adoptarem fortes medidas proteccionistas).

A crise de 1929 resolveu-se, pensa a maioria dos analistas, pelas medidas do New Deal.

Estas políticas económicas do New Deal, completamente inovadoras na altura, foram racionalizadas por Keynes na sua obra clássica Teoria geral do juro, do emprego e da moeda.

Duas dessas medidas foram o investimento maciço em obras públicas e a diminuição da jornada de trabalho – e por aqui se vê que estamos a andar ao contrário, pois se essas medidas serviram para sair de uma depressão, certamente que o seu oposto não serve o mesmo fim; a crise actual acontece apesar dessas medidas e não por causa delas.

O certo é que houve quem previsse a crise de 1929 e pusesse em prática uma política que a resolveu (mas não foi fácil nem rápido nem indolor) e iniciou um longo período de prosperidade. E agora estamos numa crise que ninguém parece entender e não podemos pensar que quem não entende o que se passa lhe dê remédio.

O pensamento por detrás do New Deal é o oposto do que está por detrás das actuais medidas, é o que conduz a um Estado que é social, forte e interventivo na economia – exactamente aquilo que os actuais gurus abominam. A resolução da crise deveu-se sobretudo à acção de Roosevelt, que mobilizou a nação toda para enfrentar a crise e teve a força política para fazer o que queria, especialmente no que se refere ao sistema financeiro. Fez dos seus primeiros 100 dias de governo a “pedra de toque” da saída da crise, tendo tomado uma imensidão de medidas, e é por isso que desde então os governos são avaliados ao fim de 100 dias.

Não nos iludamos com “boas” notícias como a de que o deficit das contas externas diminuiu – ao que parece diminuiu porque estamos a exportar ouro! Nós não produzimos ouro, pois não? Estamos literalmente a vender os anéis; quando se acabarem os anéis vamos vender o quê? E o que é que isso significa em termos do drama social a caminho? Quanto à produção industrial, está em queda, a factura dos combustíveis não para de aumentar a uma taxa assustadora e a importação de alimentos tem uma redução insignificante – ninguém consegue travar a importação de alimentos?

Na Europa, há apenas preparações para a grande catástrofe, como o aprovisionamento de fundos financeiros de socorro; será que os fundos vão conseguir aguentar a catástrofe? E se não forem? Se não forem, começa-se por deixar cair a periferia para tentar salvar o centro... por isso continuam a dizer que a “Grécia ainda não está livre de sair do euro”... bem, e nós estamos no mesmo caminho, não é? Na verdade, estamos tão acelerados que não tarda a nossa crise poderá ser muito maior do que a grega.

Temos de ter isto bem presente: a Europa não está a resolver a crise, está a barricar-se; e nós vamos ficar do lado de fora da barricada assim que as coisas se agravarem. Nenhuma medida foi tomada que altere o quadro de fundo e não, o problema não está na dívida soberana – se estivesse, a Espanha não estava em crise porque tem uma dívida soberana mínima.

Quando se afundou o Titanic, o que aconteceu aos passageiros de terceira classe? Ficaram fechados no interior do navio enquanto os passageiros de primeira se punham a salvo nos botes. E havia botes para quase toda a gente porque o Titanic só levava cerca de 1/3 dos passageiros que podia levar; o pânico dos ricos determinou a morte dos pobres.

É isto que está a acontecer: os passageiros de primeira estão a ocupar os seus lugares nos botes salva-vidas e enquanto a tripulação vai entretendo os de terceira, dando-lhes coisas para fazerem e dizendo-lhes: a gente já vos vem salvar, estejam tranquilos, estamos a tratar de tudo. É o que os países “ricos” da Europa estão a fazer com os outros países e é o que os ricos (os muito e os pouco ricos) em Portugal estão a fazer com outros portugueses – a tripulação são os governos, fraquinhos perante os ricos, a tentarem manter a maralha sossegada enquanto os ricos se salvam. Aquilo que Roosevelt fez, a mobilização geral da nação, não existe aqui, apenas se pede ao povo sacrifícios e paciência; e que não sejam piegas. O governo fala para os portugueses tal como os tripulantes do Titanic para os passageiros da terceira classe.

Para que serve a actual discussão dos limites ao deficit? É para levar a sério? Tem alguma hipótese de ser cumprida? Claro que não, é só para manter os “passageiros da terceira” entretidos, dar a ilusão de que se está a fazer alguma coisa para evitar a crise e no fim poder dizer: a culpa é vossa, não cumpriram o pacto.

Notem que eu não estou a apelar uma qualquer revolta, pelo contrário, estou a tentar evitá-la; porque quando for necessário reduzir de novo o ordenado dos funcionários públicos e as pensões dos reformados, e a taxa de desemprego passar dos 20%, ou dos 25%, é o que pode acontecer; e depois é que será o caos completo. E é isso que vai acontecer em breve. Sacrifícios vai ser preciso fazer, mas as pessoas precisam de sentir que os sacrifícios são iguais e não é isso que está acontecer – o sacrifício dos subsídios não é o mesmo para uma pessoa que ganha 1000 euros ou para uma que ganha dez vezes mais. E, além disso, as pessoas precisam de saber que os sacrifícios conduzem a algum lado, e também não é isso que está a acontecer, não há nenhum desenho de uma sociedade melhor pela frente, apenas se perspectiva um progressivo afundar das condições de vida.

Tive uma avó que dizia que só a morte não tem remédio; e é bem verdade. O que temos a fazer é encontrar uma solução para isto. Os americanos resolveram a crise de 1929 e estão a resolver esta também, aplicando basicamente a mesma receita, que é o oposto do que a Europa anda a fazer. Nós também havemos de ser capazes de encontrar uma solução, desde que pensemos no assunto.