quarta-feira, outubro 01, 2008

A Saga Alimentar

A relação entre a energia disponível do Sol e a necessária à população humana é muito grande, mas sabemos que a sobrevivência da humanidade foi sempre uma luta dura contra a fome; que outros factores teremos de considerar?

Comecemos por considerar só a terra firme. Ora esta representa apenas uns 30% da superfície do planeta – 3 milhões de TWh/ano disponíveis por fotossíntese. Mas é claro que nem toda a terra é arável. E precisamos de área de floresta e área urbanizada. Na internet podemos encontrar a % de terra arável país a país ; se a média for 30% o número acima reduz-se para 1 milhão de TWh/ano.


Mas vejamos mais: nós não somos herbívoros, não podemos utilizar directamente grande parte da energia produzida pela biossíntese. Só podemos comer frutos e tubérculos. E o resto da planta? O resto só transformado em carne por outros seres vivos capazes dessa proeza. Mas esse é um processo de baixo rendimento, porque esses seres vivos consomem energia para viverem. Portanto, uma parte da potência fotossintética tem de ser consumida para manter vivos os seres que transformam a matéria vegetal em matéria que nós podemos comer. Ou seja, o rendimento fotossintético na produção de matéria orgânica que podemos consumir é muitíssimo inferior ao valor utilizado nas contas anteriores, que se refere à matéria orgânica total!!

Reparem agora no que acontece em regiões sem acesso ao mar: ou a população é muito baixa ou então, como acontece na China, têm de comer tudo o que vive para poderem sobreviver – gado, lagartos, cobras, insectos, animais domésticos. Nenhuma energia pode ser desperdiçada.








. Os chineses comem insectos como nós comemos... peixe!



Se recuarmos um século no nosso país, saberemos que nenhum cantinho deste jardim à beira mar plantado ficava por cultivar. Por todo o país encontramos muros e socalcos feitos com as pedras que cobriam o terreno e permitindo cultivar monte acima (os chineses até construíam montes artificiais para aumentar a área arável). Não havia incêndios antigamente, dizem os velhos; pois não, tirando o pinhal de Leiria não haveria muito mais floresta, todo o terreno estava cultivado nessa altura. E, apesar de uma população mais pequena do que a actual, apesar da pesca, havia fome, muita fome – uma sardinha dava para o jantar de uma família, nunca ouviram dizer? E sopa de erva, conhecem?

A produção de alimentos deu um salto muito grande no espaço de um século. A taxa de matéria orgânica das plantas que podemos usar directamente cresceu imenso. Uma árvore de fruto actual produz uma massa de fruto em relação à massa da árvore que é muitas vezes o valor das árvores antigas (os frutos são menos saborosos? É o preço do aumento de rendimento na produção de alimentos directamente utilizáveis por nós). As espigas dos cereais são muito mais volumosas. E o gado? O gado é um intermediário entre formas orgânicas que não podemos consumir e carne. O rendimento desta transformação é tanto maior quanto mais rápido for o crescimento do gado, como é evidente. Portanto, o gado agora aumenta de peso muito mais rapidamente do que antigamente. Por selecção de espécies, hormonas e antibióticos, é claro, um animal que adoece é uma perda de energia.

O aumento do rendimento da transformação da energia solar em energia que nós podemos consumir exige aquelas coisas todas que causa repulsa ao nosso espírito «ecológico»: hormonas, insecticidas, selecção, engenharia genética.

Mas não basta a energia do Sol para a produção dos compostos orgânicos: é preciso também a matéria prima de que são feitos: carbono, oxigénio, hidrogénio, azoto, e mais uma mão cheia de outros elementos em pequenas quantidades. Os 4 mais importantes estão disponíveis na atmosfera, na forma de CO2, H2O e N2; mas, helás!, o azoto molecular da atmosfera é muito difícil de incorporar em compostos! As plantas têm de usar os compostos de azoto do solo e este esgota-se!

Já falamos da importancia dos adubos (o "ciclo das fezes"); a sua descoberta foi um passo muito importante na produção de alimentos. Um segundo passo muito importante foi a descoberta de que as leguminosas conseguem fixar o azoto atmosférico (ou melhor, umas bactérias que vivem nas suas raízes). Esta descoberta foi em parte responsável por uma quase duplicação da população mundial durante os séculos XI e XII (ajudado por um período de aquecimento global, com todas as vantagens inerentes) – as leguminosas eram plantadas e, muitas vezes, nem sequer eram colhidas: eram incorporadas no terreno como adubo para a plantação seguinte. O Umberto Eco escreveu que a as leguminosas permitiram esse salto populacional por serem um alimento muito rico em proteínas; não foi essa a importância crucial das leguminosas, foi a de «azotarem» os terrenos (a batata é que veio a ter impacto directo na alimentação devido à sua alta taxa de matéria orgânica por nós assimilável, mas isso foi só a partir do séc XVI, ela foi trazida do Perú pelos Espanhóis)


. ciclo do azoto (wikipedia)

A disponibilidade de hulha e minério de ferro, ou seja, a disponibilidade de energia, ocorrida em finais do sec XVII, veio alterar profundamente a situação da humanidade – pela primeira vez, a humanidade deixou de depender da energia recebida do Sol para a produção de alimentos porque os adubos puderam então ser produzidos industrialmente. Isto permitiu à humanidade crescer.

Portanto, o problema da alimentação da humanidade parece que reside na capacidade de produzir industrialmente os elementos necessários aos processos químicos das plantas; e esta capacidade depende da disponbilidade de densidades de potência elevadas, conseguida através do recurso aos combustíveis fósseis.

Mas quanta é, afinal, a energia que consumimos?

PS - a versão inicial deste post foi alterada, interessando, para quem leu a versão inicial, reparar nos "amarelos"

10 comentários:

antonio ganhão disse...

Esta ideia do sol como bem escasso assusta-me, é que os políticos têm tendência para taxar os bens escassos...

alf disse...

Você deve ter razão - assim como o direito ao solo, ao subsolo, ao espaço aéreo, ao espectro radioeléctrico, à água, se encontra regulado, também o direito ao Sol poderá ser regulado. Mas, para já, todo o Sol que caia em propriedade sua é seu e não paga nada, pelo contrário!

Manuel Rocha disse...

Muito bom trabalho, Alf !

Deixo duas notas complementares.

As vacas que "crescem mais" ou que "dão mais leite", bem como as árvores que dão mais frutos,fazem-no porque foram objecto de uma selecção. Mas atenção que o critério de selecção mais usado nunca teve em conta que produzissem mais consumindo menos. Ou seja, a pressão da selecção foi feita sobre o potencial metabólico. Mas para sair bife de um lado tem que entrar qualquer coisa do outro desde que não seja palha. Basicamente continua a não ser possivel fazer omeletes sem ovos. E a partir de uma certo ponto a quantidade de proteina que a vaca tem de ingerir para produzir um litro de leite a mais, é superior ao valor proteico do leite em si. E isto faz-se. Porque as realações de preços otem permitido. Mas que não se pense que se cria um boi charolés com a mesma comida que se criava um mirandés.
A segunda nota vai para a batata.Para lembrar que o seu sucesso inicial se deveu á disponibilidade em potássio dos solos europeus, cuja ocupação tradicional era pouco exigente nesse nutriente. Mas depois veio a "fome da batata" que ao contrário do que se pensa não foi só devida ao mildio. Dá-se o caso que a carência em potássio sensibiliza a planta. É como sucede com uma pessoa desnutrida: fica mais sensivel a doenças. E de facto a Europa só recuperou as produções de batata com o advento dos adubos industriais.

E ainda mais uma. Nem todas as leguminosas eram usadas para sideração ( ou fertilização verde ). A mais usada era a tremocilha e secundáriamente a faveira. Nesta técnica a melhoria das condições de estrutura do solo promovidas pelo acréscimo de "massa orgãnica" é quase mais importante que o aporte de azoto.

alf disse...

manuel rocha

fico feliz por lhe ter agradado, e agradeço-lhe o comentário simpático, embora eu saiba que isto está muito longe de ser um "bom trabalho".

Interessante o que diz das vacas, que mostra como as políticas de subsídios parecem conduzir sempre a distorções absurdas e negativas.

Muito interessante tb o que conta da batata - eu já me tinha perguntado como eram repostos no solo os outros elementos além dos 4 fundamentais; claro que esses outros elementos não sofrem o desgaste do azoto,que volta para atmosfera por acção de bactérias, mas mesmo assim certamente que deveria de haver um problema com eles.

Quem está fora das questões agronómicas não imagina o que foi a luta da humanidade pela produção de alimentos. Eu não imaginava, aprendi imenso na pequena pesquisa que fiz. E ainda não sei quase nada. Como é que alguém se lembrou de fazer a «fertilização verde» numa era em que não se conheciam os elementos e muito menos se faziam análises ao solo? De génio...

Manuel Rocha disse...

http://www.greenpeace.org/international/about/deep-green

Deixo ligação para um texto que deve interessar-lhe.

Abraço.

alf disse...

manuel rocha

Obrigado, o texto é muito interessante. Só lhe falta algo que eu espero começar a conseguir aqui: uma evidência clara, indiscutível, de que é impossível manter, a prazo, a população actual. Porque, sem essa evidência, o natural optimismo das pessoas em relação ao futuro fá-las acreditar que «a tecnologia encontrará soluções».

(como mostrarei, o meu resultado não é uma novidade, é apenas ignorado)

Eu andava muito por fora destes assuntos (pudera, como poderia, sendo ET...) e foi o seu blogue que me pôs a pensar nisto. E estou a ver que há muita gente preocupada mas que é preciso algo extraordinário para que o assunto possa ser falado.

Este assunto não interessa nem às religiões nem aos políticos, que gerem o curto prazo - e o curto prazo exige «renovação de gerações», soldados frescos para a guerra económica.

Joaninha disse...

O que eu mais gosto desta discussão é que me reporta um pouco ao meu curso de engª de produção animal, não trabalho nem nunca trabalhei na area, mas adorei.

As tecnicas agricolas são um mundo!

Beijos alf, e não desmereca o seu trabalho, está a ser um exercicio muito interessante.

anonimodenome disse...

eu assusto-me mais do que o António.
já hoje os mortos são taxados.
porque se fica na campa, porque se fica nos ossários, porque a venda da placa de mármore é negócio da junta de freguesia.

Agora compreendo melhor a declaração do alf de que o governo chinês anda bem avisado.
a política de 1 filho por casal parece servir melhor o futuro da qualidade de vida deles e do mundo em geral.
mas tenho receio que amanhã um chinês gaste mais energia do que três ou quatro chineses do tempo do Mao.
pior ainda é que no tempo do Mao este, a bem ou a mal, impunha regras, matava muitos azarados, e alimentava os sobreviventes.
amanhã, com dinheiro fresco a correr, a podridão da corrupção vai-se instalar e a China perde o norte.
vamos ver que os mais ricos vão poder comprar licenças para ter mais de um filho.
que os chineses vão poluir à exaustão o seu país e a atmosfera.
que os fabricantes de produtos alimentares venenosos já não irão ser condenados à morte, como noutros tempos.

alf disse...

anonimodenome

dantes as coisas podiam ser «de borla» porque eram suportadas pela energia que vinha do Sol e esta é gratuita.

Como veremos noutro post, tudo se pode resumir a «energia» - tal como tudo se pode reduzir a dinheiro. Veremos que se correspondem.

Acontece que hoje as coisas já não funcionam com essa energia gratuita mas com outra, que não é gratuita. E, por isso, tudo tem um preço - o preço da energia que implica.

E isso é assim porque somos demais.

Quanto aos «ricos» poderem comprar o direito a mais filhos, já é isso que acontece no mundo ocidental - os pobres e a classe média/baixa, não ganham o suficiente para poderem ter filhos.

a poluição não é o problema maior; o problema maior vai ser a falta de energia.

Cá, os tipos que envenenaram bebidas e causaram a morte a pelo menos um noruegues foram absolvidos - provou-se que compraram o «veneno» (alcool metílico), provou-se a sua ligação à bebida adulterada, mas não se provou que foram eles que deitaram o alcool metílico que eles compraram na bebida que eles venderam - pelo menos a fazer fé na comunicação social...

não são os ricos que são corruptos; todas as pessoas, ou quase, o são, na medida das suas possibilidades. A ocasião faz o ladrão. A Moral foi inventada para combater isso; depois pensou-se que a «justiça» era uma solução melhor; mas está-se a ver que não é, anda meio-mundo a tentar vigarizar meio-mundo sem o mais pequeno escrúpulo. Ser ladrão ou assassino deixou de ser censurável; ser condenado em tribunal é que é. Conheço pais que educam os filhos para que não se prendam a ideias de honestidade, porque entendem que isso só irá prejudicá-los no futuro. Ou seja, as pessoas são já educadas para a desonestidade, o que é entendido como uma qualidade, cujas vantagens estão bem à vista.

NC disse...

«Os chineses comem insectos como nós comemos... peixe!»

É caso para dizer: não é carne nem é peixe