O velho pastor, apoiado no bordão, mirava o outro pastor apontando com o cajado um novo pasto ao seu imenso rebanho, já bem maior que o rebanho do velho. O novo pastor, que com ele aprendera a arte para depois iniciar o seu próprio rebanho em vez de se tornar seu ajudante. Uma sombra turvou o olhar do velho.
Mas o novo pastor não tinha aprendido tudo o que ele podia ensinar, percebeu subitamente o velho, que reconhecia agora aquele local. O pai do seu pai, lembrava-se, dele lhe falara. Os sinais ainda lá estavam. “Quando os vires”, avisara ele,”sabe que o fim do terreno está próximo. Dentro do canavial se acaba o solo, as ovelhas desaparecem tragadas pela cova sem fundo. Sem tempo para um balido. Umas atrás das outras. Apenas as mais ligeiras ou as que o destino escolher se salvarão.”
Um sorriso doce e triste conquistou a face. Era a recordação das histórias que o pai do pai contava nas longas tardes da sua infância, voltados para poente, assistindo ao pôr-do-sol nos longínquos cumes de contornos diáfanos na contraluz. Com um abanão de cabeça afastou tais memórias, tinha de estar atento, o canavial já se avistava.
Claro que o outro nada sabia disso e a soberba cegava-lhe a prudência. Conduzia o seu rebanho direitinho para o canavial. Avisá-lo? Seria inútil, para o outro nada havia a aprender com o velho, como lhe chamava. Avisar as ovelhas inútil era, rir-se-iam, confiantes que estavam na sabedoria do seu pastor. Mais cego é quem não quer ver do que quem não tem olhos.
Um pensamento malicioso despontou. As ovelhas do outro perceberiam que o seu pastor sempre era cego e ignorante quando começassem a cair... nessa altura viriam ter consigo... as que se salvassem... como filhos pródigos regressando a casa... O rebanho voltaria a ser um só, e ele o seu pastor!
Endireitou-se. Quase que sentiu remorsos, aquela alegria com o desastre iminente não lhe parecia própria. De qualquer maneira, pensou, não está na sua mão evitar o desastre. Este pensamento aliviou-lhe a culpa. O plano está traçado: dirá a todas as ovelhas, às suas e também às do outro, que o novo pastor está cego e as conduz atrás de enganos; as ovelhas do novo não acreditarão evidentemente, porque haveriam de acreditar?; mas quando acontecer o desastre, as sobreviventes lembrar-se-ão, e perceberão então que apenas ele, o velho pastor, as pode guiar, pois apenas ele vê, apenas ele tem o conhecimento verdadeiro.
24 comentários:
Oops! Isto sem o Tulito melhorou e muito! Mas sempre o mesmo estilo: nunca dar ao leitor o que ele espera, o prémio da moral final, do desenlace.
O contador de histórias tem que correr o risco da avaliação. Ela só acontece no desenlace final e na moral da história (existe sempre uma moral). Fácil é ficar a meio caminho, como pastor que leva o seu rebanho com a promessa do mais verdejante dos pastos, e o dia termina sempre com a promessa em suspenso. Esse é quem perde as suas ovelhas para o pastor cego!
António
Em vez do diálogo, a parábola é outra forma de dizer o que tem de ser dito. Forma em que você é mestre...
Não há moral nenhuma, não há desenlace, há uma mensagem que tem de ser descodificada.
Tanto quanto percebo, o novo pastor é a Ciência e o velho pastor é a Igreja; as ovelhas somos nós, os humanos; e isto deve ter a ver com a conversa que decorre ente o Tulito e a Alita.
Isto retrata um pouco o que está a acontecer.
Mas o velho pastor poderia conjuntamente com o novo guiar o rebalho, apoiarem-se mutuamente...
Assim ambos levariam o rebanho a bom porto (entenda-se a bom pasto =P). Mas teria que ser um trabalho em equipa onde nenhum impusesse as suas ideias, mas estudassem qual a melhor...
metódica
repare que o velho pastor ainda pensa nisso; mas conclui que é impossível, o pastor novo é arrogante, irá rir-se dele, não o levará a sério.
Pensa ainda em falar às ovelhas; mas as ovelhas confiam cegamente no novo pastor, ele percebe que é impossível falar com elas.
(é possível convencer alguém de que o aquecimento global é uma fraude?)
Portanto, o pastor velho não encontra solução para evitar o desastre. Conclui que isso não está nas mãos dele.
Mas o pastor velho tb não é um santo - ele percebe que pode tirar vantagem da situação: pode usa-la para provar que o detentor do conhecimento é ele e não o pastor novo!
... só que há um erro fatal no raciocínio do pastor velho...
Que ele não é um santo dá para perceber...
O erro fatal será o facto de ele pensar que as ovelhas irão voltar para ele, de que afinal sempre vai voltar a ter o rebanho todo?
Aproveito para desejar uma boa Páscoa com mtas amêndoas, ovinhos... =)
... só que há um erro fatal no raciocínio do pastor velho...
alf:
nunca podes dar o bolo por inteiro
prazer aos pedaços?.
Será dispensável a energia do pastor novo? Não creio tal, porque só através de avanços tecnológicos é que se pode procurar um futuro viável.
Se a Humanidade não colaborar as hipóteses de sobrevivência serão ínfimas. Fraca consolação a do velho pastor. Um rebanho extinto não precisa de pastores.
Boa Páscoa.
O que salva ambos os pastores é a crença das ovelhas em que precisam de ser guiadas, é a sua fé no (seu) pastor.
Como diz o Alf, quem pode atacar esta nova religião do aquecimento global?
metódica
vejo que de psicologia de ovelhas percebes mais que o pastor velho eheh... como é que presumes que as humanas ovelhas poderão reagir?
anonimodenome
para o velho pastor o importante pode ser que o rebanho seja todo dele. Não é isso que querem todos os senhores deste mundo?
Que fazia dantes a Igreja? conversão ou morte, não era?
Não se tornou toda a europa cristã?
Os caminhos da humanidade são os do poder absoluto, não os do bem comum. Por enquanto... e não há outro caminho, se alguém sair dele, outro o ocupará.
antonio
profundo antónio, profundo eheh
não sei se os pastores se salvarão não... mas lá que as ovelhas são crentes, isso é um facto; e lá que os pastores o são porque elas são crentes e lhes obedecem sem pensar também é um facto... e se calhar nem podia ser doutra maneira, sem pastor que seria das ovelhas??
As ovelhas humanass que seguem o pastor novo vão culpar o pastor velho, por este não ter sequer tendado avisá-las.
Se o pastor velho as tivesse alertado para o que poderia acontecer aí estava nas mãos delas a decisão: seguir ou não o conselho do pastor velho.
Se não seguissem e percebessem que ele tinha razão não o poderiam culpar de nada, pois tinham sido alertadas e se não fosse tarde iriam ter com ele pediam-lhe desculpa por não ter acreditado nele.
Não tendo o pastor velho avisado ninguém as ovelhas vão culpa-lo, vão responsabilizá-lo por o que lhes estiver a acontecer.
É a atitude do velho pastor que conta e não o facto de as ovelhas acreditarem ou não no que este lhes diz.
metódica
O texto não estaria muito claro, já o corrigi: o plano do pastor velho é avisar todas as ovelhas, as dele e as do outro pastor; ele não vai insistir, vai apenas dizer uma vez; o suficiente para as ovelhas não poderem depois dizer que a culpa é dele.
O seu raciocínio está muito certo, mas agora acrescente-lhe duas coisas: as ovelhas foram avisadas, embora sem insistência, e vão estar em grande stress, enfrentando um desastre terrivel, a sobrevivência posta em causa. Numa situação de grande stress, os instintos assumem total controlo das ovelhas...
Vão haver ovelhas que apsar do stress vão usar a razão (uma minuria) e ver se é razoável ou não voltar para o velho pastor de acordo com as informações que este lhes deu.
Vão haver outras (a maioria), que pelo contrario, com o stress vão ser comandadas pelo medo e neste caso vão acontecer duas coisas: Umas vão voltar para o velho pastor, certas de que este tendo o conhecimento vai impedir que algo de mal lhes aconteça.
As outras não vão querer acreditar e vão pensar que afinal o novo pastor tem razão, e que o velho pastor já viu melhores dias e vão continuar com o pastor novo.
metódica
agora é só aguardar uma semana e logo veremos se será assim ou não.
Aguardemos então!
=)
Penso que algumas ovelhas do Novo vão cair pela ribanceira. Nessa altura o Novo, irritado, atira o Velho pela ribanceira abaixo.
Quando a Guarda chega, o Novo diz-lhes que o Velho, já quase cego, não viu a ribanceira. A guarda chama o CSI de Miami pra tirar impressões digitais. Todas as ovelhas são entregas a uma instituição de protecção de animais. O Velho suicida-se, não sem antes matar a amante e o avô desta. O caso fica em águas de bacalhau.
Acertei?
Diogo
Sei lá!... o melhor será fazermos como a metódica, aguardemos pelo desenlace; e que seja rápido porque temos a contância da velocidade da luz à nossa espera... dizem que essa constância é uma amante cósmica...
Está muito bem construida a metáfora, sim senhor !
Concordo com o António sobre o gene "ovino" da nossa espécie. Gostamos de "pastores" e de "cães de gado". Mas em qualquer rebanho que se preze há sempre uma ovelha que gosta de tresmalhar. São as que não gostam nem de rebanhos, nem de pastores. À conta disso nem sempre pastam nos melhores pastos, mas confesso que são as minhas favoritas...:))
manuel rocha
ainda bem que gostou... os meus passos nestas artes ainda são muito inseguros... mas há mais qq coisa que virá num próximo post que vai esclarecer melhor a metáfora.
Essa ovelhas reguilas são muito importantes; acaba por ser graças a elas que as outras vão em segurança, pois são elas que ousam experimentar novos pastos, de que depois todos beneficiam, qd as coisas correm bem.
Olha mé-més.
Sabes Alf, a ovelha é o animal mais "estupido" que existe. Se a ovelha matriarca se atirar pela ribanceira as outras atiram-se atrás. É assim que se põe um rebanho de ovelhas numa manga de maneio. Agarras a matriarca e empurras para a manga e as outras atiram-se todas atrás. É um bicho amoroso. Quando tirei o curso achei adoraveis, mas realmente não muito inteligentes. Será coicidencia que a igreja chame de rebanho os fieis? Não sei, mas dá que pensar.
Quanto ao texto, gosto da escrita e da ideia.
Olá joaninha!
Faltava aqui o teu comentário pois claro! Não sabia isso das ovelhas (a gente já só conhece os animais que estão no jardim zoológico... e a BBC não faz documentários sobre animais domésticos.
É muito bem posta a tua questão. E não é coincidência por certo.
Obrigado por gostares. Eu sei que não sou escritor, o meu objectivo é só conseguir expor as ideias sem aborrecer os leitores; as tuas palavras generosas são um estímulo.
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