sábado, março 22, 2008

O Pastor Cego



Essa relva faz mal às barriguinhas, xooo, xooo”, aquilo é que ele tem uma lata, sempre a orientar o rebanho para aqui e para ali, inventando perigos constantes; e as ovelhas acreditam, acreditam sempre, muitas das minhas já passaram para o rebanho dele, conquistadas pelo ar de quem sabe, pela convicção dele. Duvidam dos próprios olhos para acreditarem nos olhos de quem não vê.

O velho pastor, apoiado no bordão, mirava o outro pastor apontando com o cajado um novo pasto ao seu imenso rebanho, já bem maior que o rebanho do velho. O novo pastor, que com ele aprendera a arte para depois iniciar o seu próprio rebanho em vez de se tornar seu ajudante. Uma sombra turvou o olhar do velho.
Com alguma dificuldade conseguia convencer as suas ovelhas a ficarem. Ia-lhes dizendo que o outro pastor estava tão cego que nem a própria ignorância via; lá ficavam na dúvida, hesitando assim em trocar o pastor que já dos pais delas cuidara pelo novo pastor e suas promessas.

Mas o novo pastor não tinha aprendido tudo o que ele podia ensinar, percebeu subitamente o velho, que reconhecia agora aquele local. O pai do seu pai, lembrava-se, dele lhe falara. Os sinais ainda lá estavam. “Quando os vires”, avisara ele,”sabe que o fim do terreno está próximo. Dentro do canavial se acaba o solo, as ovelhas desaparecem tragadas pela cova sem fundo. Sem tempo para um balido. Umas atrás das outras. Apenas as mais ligeiras ou as que o destino escolher se salvarão.”

Um sorriso doce e triste conquistou a face. Era a recordação das histórias que o pai do pai contava nas longas tardes da sua infância, voltados para poente, assistindo ao pôr-do-sol nos longínquos cumes de contornos diáfanos na contraluz. Com um abanão de cabeça afastou tais memórias, tinha de estar atento, o canavial já se avistava.

Claro que o outro nada sabia disso e a soberba cegava-lhe a prudência. Conduzia o seu rebanho direitinho para o canavial. Avisá-lo? Seria inútil, para o outro nada havia a aprender com o velho, como lhe chamava. Avisar as ovelhas inútil era, rir-se-iam, confiantes que estavam na sabedoria do seu pastor. Mais cego é quem não quer ver do que quem não tem olhos.

Um pensamento malicioso despontou. As ovelhas do outro perceberiam que o seu pastor sempre era cego e ignorante quando começassem a cair... nessa altura viriam ter consigo... as que se salvassem... como filhos pródigos regressando a casa... O rebanho voltaria a ser um só, e ele o seu pastor!

Endireitou-se. Quase que sentiu remorsos, aquela alegria com o desastre iminente não lhe parecia própria. De qualquer maneira, pensou, não está na sua mão evitar o desastre. Este pensamento aliviou-lhe a culpa. O plano está traçado: dirá a todas as ovelhas, às suas e também às do outro, que o novo pastor está cego e as conduz atrás de enganos; as ovelhas do novo não acreditarão evidentemente, porque haveriam de acreditar?; mas quando acontecer o desastre, as sobreviventes lembrar-se-ão, e perceberão então que apenas ele, o velho pastor, as pode guiar, pois apenas ele vê, apenas ele tem o conhecimento verdadeiro.
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24 comentários:

antonio ganhão disse...

Oops! Isto sem o Tulito melhorou e muito! Mas sempre o mesmo estilo: nunca dar ao leitor o que ele espera, o prémio da moral final, do desenlace.

O contador de histórias tem que correr o risco da avaliação. Ela só acontece no desenlace final e na moral da história (existe sempre uma moral). Fácil é ficar a meio caminho, como pastor que leva o seu rebanho com a promessa do mais verdejante dos pastos, e o dia termina sempre com a promessa em suspenso. Esse é quem perde as suas ovelhas para o pastor cego!

alf disse...

António

Em vez do diálogo, a parábola é outra forma de dizer o que tem de ser dito. Forma em que você é mestre...

Não há moral nenhuma, não há desenlace, há uma mensagem que tem de ser descodificada.

Tanto quanto percebo, o novo pastor é a Ciência e o velho pastor é a Igreja; as ovelhas somos nós, os humanos; e isto deve ter a ver com a conversa que decorre ente o Tulito e a Alita.

Metódica disse...

Isto retrata um pouco o que está a acontecer.
Mas o velho pastor poderia conjuntamente com o novo guiar o rebalho, apoiarem-se mutuamente...
Assim ambos levariam o rebanho a bom porto (entenda-se a bom pasto =P). Mas teria que ser um trabalho em equipa onde nenhum impusesse as suas ideias, mas estudassem qual a melhor...

alf disse...

metódica

repare que o velho pastor ainda pensa nisso; mas conclui que é impossível, o pastor novo é arrogante, irá rir-se dele, não o levará a sério.

Pensa ainda em falar às ovelhas; mas as ovelhas confiam cegamente no novo pastor, ele percebe que é impossível falar com elas.

(é possível convencer alguém de que o aquecimento global é uma fraude?)

Portanto, o pastor velho não encontra solução para evitar o desastre. Conclui que isso não está nas mãos dele.

Mas o pastor velho tb não é um santo - ele percebe que pode tirar vantagem da situação: pode usa-la para provar que o detentor do conhecimento é ele e não o pastor novo!

... só que há um erro fatal no raciocínio do pastor velho...

Metódica disse...

Que ele não é um santo dá para perceber...
O erro fatal será o facto de ele pensar que as ovelhas irão voltar para ele, de que afinal sempre vai voltar a ter o rebanho todo?

Metódica disse...

Aproveito para desejar uma boa Páscoa com mtas amêndoas, ovinhos... =)

anonimodenome disse...

... só que há um erro fatal no raciocínio do pastor velho...
alf:
nunca podes dar o bolo por inteiro
prazer aos pedaços?.
Será dispensável a energia do pastor novo? Não creio tal, porque só através de avanços tecnológicos é que se pode procurar um futuro viável.
Se a Humanidade não colaborar as hipóteses de sobrevivência serão ínfimas. Fraca consolação a do velho pastor. Um rebanho extinto não precisa de pastores.

Boa Páscoa.

antonio ganhão disse...

O que salva ambos os pastores é a crença das ovelhas em que precisam de ser guiadas, é a sua fé no (seu) pastor.

Como diz o Alf, quem pode atacar esta nova religião do aquecimento global?

alf disse...

metódica

vejo que de psicologia de ovelhas percebes mais que o pastor velho eheh... como é que presumes que as humanas ovelhas poderão reagir?

alf disse...

anonimodenome

para o velho pastor o importante pode ser que o rebanho seja todo dele. Não é isso que querem todos os senhores deste mundo?

Que fazia dantes a Igreja? conversão ou morte, não era?
Não se tornou toda a europa cristã?
Os caminhos da humanidade são os do poder absoluto, não os do bem comum. Por enquanto... e não há outro caminho, se alguém sair dele, outro o ocupará.

alf disse...

antonio

profundo antónio, profundo eheh

não sei se os pastores se salvarão não... mas lá que as ovelhas são crentes, isso é um facto; e lá que os pastores o são porque elas são crentes e lhes obedecem sem pensar também é um facto... e se calhar nem podia ser doutra maneira, sem pastor que seria das ovelhas??

Metódica disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Metódica disse...

As ovelhas humanass que seguem o pastor novo vão culpar o pastor velho, por este não ter sequer tendado avisá-las.
Se o pastor velho as tivesse alertado para o que poderia acontecer aí estava nas mãos delas a decisão: seguir ou não o conselho do pastor velho.
Se não seguissem e percebessem que ele tinha razão não o poderiam culpar de nada, pois tinham sido alertadas e se não fosse tarde iriam ter com ele pediam-lhe desculpa por não ter acreditado nele.
Não tendo o pastor velho avisado ninguém as ovelhas vão culpa-lo, vão responsabilizá-lo por o que lhes estiver a acontecer.

É a atitude do velho pastor que conta e não o facto de as ovelhas acreditarem ou não no que este lhes diz.

alf disse...

metódica

O texto não estaria muito claro, já o corrigi: o plano do pastor velho é avisar todas as ovelhas, as dele e as do outro pastor; ele não vai insistir, vai apenas dizer uma vez; o suficiente para as ovelhas não poderem depois dizer que a culpa é dele.

O seu raciocínio está muito certo, mas agora acrescente-lhe duas coisas: as ovelhas foram avisadas, embora sem insistência, e vão estar em grande stress, enfrentando um desastre terrivel, a sobrevivência posta em causa. Numa situação de grande stress, os instintos assumem total controlo das ovelhas...

Metódica disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Metódica disse...

Vão haver ovelhas que apsar do stress vão usar a razão (uma minuria) e ver se é razoável ou não voltar para o velho pastor de acordo com as informações que este lhes deu.
Vão haver outras (a maioria), que pelo contrario, com o stress vão ser comandadas pelo medo e neste caso vão acontecer duas coisas: Umas vão voltar para o velho pastor, certas de que este tendo o conhecimento vai impedir que algo de mal lhes aconteça.
As outras não vão querer acreditar e vão pensar que afinal o novo pastor tem razão, e que o velho pastor já viu melhores dias e vão continuar com o pastor novo.

alf disse...

metódica

agora é só aguardar uma semana e logo veremos se será assim ou não.

Metódica disse...

Aguardemos então!
=)

Diogo disse...

Penso que algumas ovelhas do Novo vão cair pela ribanceira. Nessa altura o Novo, irritado, atira o Velho pela ribanceira abaixo.

Quando a Guarda chega, o Novo diz-lhes que o Velho, já quase cego, não viu a ribanceira. A guarda chama o CSI de Miami pra tirar impressões digitais. Todas as ovelhas são entregas a uma instituição de protecção de animais. O Velho suicida-se, não sem antes matar a amante e o avô desta. O caso fica em águas de bacalhau.

Acertei?

alf disse...

Diogo

Sei lá!... o melhor será fazermos como a metódica, aguardemos pelo desenlace; e que seja rápido porque temos a contância da velocidade da luz à nossa espera... dizem que essa constância é uma amante cósmica...

Manuel Rocha disse...

Está muito bem construida a metáfora, sim senhor !

Concordo com o António sobre o gene "ovino" da nossa espécie. Gostamos de "pastores" e de "cães de gado". Mas em qualquer rebanho que se preze há sempre uma ovelha que gosta de tresmalhar. São as que não gostam nem de rebanhos, nem de pastores. À conta disso nem sempre pastam nos melhores pastos, mas confesso que são as minhas favoritas...:))

alf disse...

manuel rocha

ainda bem que gostou... os meus passos nestas artes ainda são muito inseguros... mas há mais qq coisa que virá num próximo post que vai esclarecer melhor a metáfora.

Essa ovelhas reguilas são muito importantes; acaba por ser graças a elas que as outras vão em segurança, pois são elas que ousam experimentar novos pastos, de que depois todos beneficiam, qd as coisas correm bem.

Joaninha disse...

Olha mé-més.
Sabes Alf, a ovelha é o animal mais "estupido" que existe. Se a ovelha matriarca se atirar pela ribanceira as outras atiram-se atrás. É assim que se põe um rebanho de ovelhas numa manga de maneio. Agarras a matriarca e empurras para a manga e as outras atiram-se todas atrás. É um bicho amoroso. Quando tirei o curso achei adoraveis, mas realmente não muito inteligentes. Será coicidencia que a igreja chame de rebanho os fieis? Não sei, mas dá que pensar.
Quanto ao texto, gosto da escrita e da ideia.

alf disse...

Olá joaninha!
Faltava aqui o teu comentário pois claro! Não sabia isso das ovelhas (a gente já só conhece os animais que estão no jardim zoológico... e a BBC não faz documentários sobre animais domésticos.

É muito bem posta a tua questão. E não é coincidência por certo.

Obrigado por gostares. Eu sei que não sou escritor, o meu objectivo é só conseguir expor as ideias sem aborrecer os leitores; as tuas palavras generosas são um estímulo.