Que desgraça! Tudo perdido...
Olha, conseguiu atirar a pasta... os papeis... os papeis... se o vento os levar... ainda há esperança... se o vento os levar para fora...
...Dio mio, Dio mio, por favor... ai... espalhados pelos telhados... estão a apanhá-los... não há vento, nem um voa...
...estão a apanha-los... vão apanha-los todos...
...piedade Dio mio...
...falhado, tudo falhado, não terei outra oportunidade...
e o meu corajoso companheiro... Deus tenha piedade... Deus o perdoe... Deus me perdoe... a Humanidade me perdoe... que terrível falhanço...
Fechou a janela abafando o ruído surdo dos passos dos guardas que percorriam os telhados, ainda à procura de alguma folha de papel que ainda não tivessem apanhado. Ao virar-se para o interior do quarto, não foi os seus aposentos que viu; com os olhos cegos pela luz exterior e pelas lágrimas, a imagem do pequeno cofre onde o segredo era guardado surgiu-lhe como um fantasma no fundo escuro. Numa fracção de segundo, a história da milenar demanda passou-lhe inteira mas o que permaneceu foi a lembrança do momento em que percebeu. O momento em que tudo mudara, em que todos os seus projectos e ideias perderam subitamente o sentido; o momento em que soube que a sua vida estava consagrada a um único objectivo: alertar a Humanidade! E soube-o com a clarividência que acompanha uma premonição, ele conheci-a bem.
Lembrou-se da repulsa que lhe causou a argumentação deles. “Que, na verdade, não sabiam quando seria nem como seria; que divulgar o segredo apenas iria servir para desacredita-los; que seriam acusados de espalhar o pânico, não sabia ele o que tinha acontecido no ano 1000? Claro que agora tinham novos elementos, mas não eram ainda suficientes. E havia que pensar no depois: depois do Evento a Igreja precisaria de todo o seu poder para controlar os sobreviventes; não sabia ele como a escassez transforma os homens em lobos? Não tivera já a Igreja de intervir tantas vezes no passado?”
Nunca acreditara que eles não soubessem mais do que diziam; simplesmente, optavam pela estratégia segura a longo prazo, conseguindo permanecer indiferentes às consequências de curto prazo, numa conversa de “os fins justificam os meios”. Mas as consequências seriam tais que ele não podia aceitar que nada se fizesse para as minimizar. Não podia, tão simples quanto isso, era mais forte do que ele.
A imagem do sofrimento que estava para chegar ocupava-lhe agora a mente com detalhes que começavam a ser dolorosos. Deixou-se cair na cama, curvado, em posição fetal, as lágrimas escorriam-lhe através das pálpebras fechadas. A angústia desses dias descia-lhe agora pelas entranhas para logo subir de novo. A intensidade da sensação crescia, multiplicava-se, ocupava todos os recantos do seu ser; como se a angústia de toda a humanidade se estivesse a concentrar nele, como se ele estivesse a sofrer no lugar de todas as outras criaturas. Esse pensamento, ele a sofrer no lugar da humanidade inteira, ele a conseguir finalmente proteger a humanidade de todo aquele imenso sofrimento, fez surgir uma ténue alegria no fundo do seu ser, uma luz a cintilar na escuridão em que se afundava. Ainda teve forças para murmurar uma prece de agradecimento - Obrigado Pai.
Seriam umas duas da manhã quando os dois homens entraram silenciosamente no quarto. O mais velho aproximou-se do vulto deitado em posição fetal, pôs-lhe dois dedos na carótica, e disse:
- Podes chamar os embalsamadores. Anuncia a morte de Sua Santidade.
Com um gesto lento, Alita faz desaparecer o texto:
“ Realmente, é muito misterioso... E foi a máquina de inteligência artificial que fez isto? Como?”
“Estava a testar um novo programa de geração de hipóteses; e lembrei-me de o pôr a analisar os dados referentes a um qualquer crime não resolvido.”
“Dos humanos?”
“Claro! A máquina, a MIA, como lhe chamo, está ligada à Net deles. Pedi-lhe uma lista de mortes suspeitas e pu-la a analisar a primeira da lista. Ela devolveu-me uma lista de dados que tinha encontrado e que estavam em conflito, para eu resolver”
“Quer dizer que encontrou informações erradas?”
“Sim, é normal, os nossos cérebros interpretam os dados de acordo com as suas presunções e chegam a certezas erradas, que depois inquinam a investigação; a máquina detecta os conflitos e já é capaz de resolver alguns, atribuindo graus de confiança inversos às presunções que detecta; mas muitos ainda não consegue resolver.”
“E então, corrigiste a lista?”
“Não!”
“Não?”
“Enquanto a máquina estava no seu processamento, eu estive a ver a lista de mortes suspeitas e saltou-me à vista esta do Papa. Assassinarem um Papa?? Isso é muito revelador do estado actual da sociedade deles. Muito mais interessante que um crime passional qualquer, ou mafioso, ou por jogos de poder, que não acrescenta nada ao que já sabemos deles.”
“Ahh, então puseste a MIA a analisar este...”
“Claro! Pedi-lhe a reconstrução da morte do Papa. E ela surgiu logo com isto! Nenhuma lista de conflitos, nada! Para a MIA, isto é clarinho.”
“Nem tanto... repara que ela não afirma que ele foi assassinado...”
“Isso significa insuficiência de dados, mas se ele foi ou não assassinado já deixou de me interessar. A possibilidade de haver quem saiba do Evento é que me interessou!”
“Pois é... e parece que quem sabe está disposto a tudo para que não se saiba...”
“Isso fez-me pensar... no estado primitivo deles, o que será melhor? Serão capazes de usar o conhecimento do Evento utilmente ou vão entrar em paranóia?”
“Já andam em paranóia com a treta do aquecimento global... “
“Eles já sobreviveram a Eventos... hão-de voltar a sobreviver... à rasquinha...”
“Temos de pensar muito bem... será que está afinal certo quem não quer que se saiba? Esse alguém deve conhecer os Humanos melhor do que nós...”
“Ufff, mais uma complicação... agora nem sabemos se devemos intervir ou não!”
10 comentários:
Alf, porque é que desligou a máquina de inteligência artificial? Finalmente tínhamos aqui um belo pedaço de texto.
E sim, você tem razão a Igreja na sua sabedoria milenar tem-se preparado para o grande evento. Tem ensaiado formas de sobrevivência, novos locais de vida (cruzadas) e formas extremas de controlo da sociedade (Inquisição).
Há quem veja nisso a mão de Deus a guiar o destino da sua Igreja, a de Pedro.
Ahaha!
Hilariante e assertivo !
Como diria o Obélix, "estes romanos são loucos"!!!
:))
António
Isto vem do Tulito... eu cá não tenho nada a ver com isto...
Além dessa experiência do passado, há outras coisas que o Papa a seguir a este deverá fazer para preparar o que pensam que vem aí...
Manuel rocha
Hilariante?? Olhe que não, olhe que não...
Alf cá estou eu =)
Já tinha lido sobre a morte deste papa e acho que também já vi um filme que conta a sua história.
O livro que li e recomendo foi "O Último Papa" de Luís Miguel Rocha.
É um livro muito interessante do género do Código da Vinci. Li e adorei!
A morte so Papa ainda é um mistério para todos nós... ou será que não ;)
raiz de carla
sê bem regressada! que esta viagem não se faz sem ti... lá mais para diante vai-se saber porquê, diz-me uma MIA que para aqui tenho...
Tiro-te o chapéu: com o que estudas e blogas, ainda arranjas tempo para leituras não obrigatórias. Ando há que tempos para ler esse livro e ainda não consegui. Mas com a tua recomendação vou tratar disso.
Há uns mistérios que se vão começar a revelar quando a actividade solar começar a aumentar de novo... agora estamos na bonança que precede a tempestade.
Obrigada =)
Alf, não estou a ver o que é um MIA...
A maioria da Leitura não obrigatoria faço-a nas férias do Verão que é quando tenho tempo. Adoro ler e aprobeito as férias para por a leitura em dia. Na época de aulas não tenho tempo para as minhas leituras se bem que de vez enquanto lá vá dando uma espreitadela =P
Acho que vai adorar o livro, lê-se bastante bem e achei-o bastante divertido apesar de algumas situações da história...
raiz, a MIA... eheh... é a Máquina de Inteligência Artificial do Tulito, que é referida no post.
Esse livro está agendado para Fevereiro!
Ah, ok... eheh =P
Depois gostaria de saber o que achou do livro =)
Enviar um comentário