Ando há algum tempo para falar sobre o que é um raciocínio simplório, subtil ou enviesado e vai ser agora; a análise da Evolução continua no próximo post, onde veremos um facto importante que não entra na actual teoria da Evolução mas que é crucial. O tema deste post é importante porque nos ajuda a saber raciocinar melhor.
.......
Consideremos um jogador de xadrez. Face a uma disposição de peças no tabuleiro, logo uma hipótese de jogada lhe ocorre. Essa é a hipótese simplória. Se for um jogador principiante, faz essa jogada. Se não for, vai analisar as consequências. E vai testar outras jogadas. Até chegar a uma decisão. Essa é a hipótese subtil, porque já não resulta do que está directamente à vista.
Como sabem, ganha no xadrez o jogador que for capaz de perspectivar mais longe a jogada. Ou seja, o que for mais «subtil». A hipótese «simplória» é quase sempre errada, no entanto, é a que parece «lógica» a um espectador que só tenha conhecimentos superficiais de xadrez.
O Einstein disse que a diferença entre ele e os outros físicos é a de que ele pensava mais longamente nos assuntos; logo, era mais subtil; e frisou a importância do pensamento subtil numa frase famosa, a de que Deus é subtil mas não malicioso.
No entanto, não foi entendido, foi até escarnecido; porquê?
Porque nós não fazemos nem raciocínios subtis nem simplórios; nós fazemos raciocínios enviesados.
O nosso Inconsciente, com base nas informações que ele aceita como «verdade» e nos seus próprios critérios, de raiz instintiva, forma uma opinião sobre um assunto, atinge uma conclusão; em seguida o nosso consciente é mobilizado para provar que essa conclusão está certa. Os nossos raciocínios não servem um processo de descoberta mas um processo de demonstração de uma ideia, opinião, conclusão, certeza, estabelecida anteriormente a um nível inconsciente. Os nossos raciocínios são, portanto, enviesados, visam provar algo que já foi definido a priori.
A justiça utiliza isto como metodologia para fazer um julgamento na sua estrutura de defesa/acusação/juiz, onde tanto a defesa como a acusação devem fazer uma argumentação enviesada para o seu lado. É uma metodologia que funciona na fase de julgamento. Porém, já a Polícia não pode funcionar com base na mesma metodologia, o investigador policial tem de fugir dos raciocínios enviesados ou dificilmente desvendará algum crime.
Também em Ciência este problema se põe com enorme acuidade. Como fugir aos raciocínios enviesados?
A melhor maneira é a pessoa ter consciência disto e dos factores de enviesamento dos seus raciocínios; mas isso é difícil e subjectivo, é conveniente uma metodologia que dê alguma garantia de protecção contra os raciocínios enviesados. Então, a Ciência adoptou como resposta a este problema o raciocínio simplório, ou seja, constrói os seus modelos de realidade directamente sobre os resultados das observações. É assim a teoria Atómica, do Big Bang, da Relatividade, Electromagnética e de Ptolomeu. A excepção é a de Newton, que resulta de raciocínios subtis.
Isto é um progresso em relação a uma fase anterior, baseada em raciocínios enviesados, não é um retrocesso como poderão estar a pensar. O raciocínio simplório é menos mau que o enviesado. Claro que o «subtil» é melhor, mas ainda não demos esse salto a não ser pontualmente e é tão excepcional que classificamos de «génios» as pessoas que ultrapassam o que resulta directamente da observação.
Vou dar-vos exemplos. Ontem vi um documentário no Discovery Civilization, espanhol, que sustentava a ideia de que o Colombo seria um nobre espanhol, catalão. Apresentado como se fosse um estudo «científico», era assaz enviesado; por exemplo, a única referência a Portugal era a de que ele fora casado como uma nobre portuguesa e unicamente para provar que ele não poderia ser um plebeu genovês. Portugal nem aparecia num mapa várias vezes repetido, onde toda a península era Espanha. Pensarão: uns malandros os espanhóis! Na verdade, isto é o que fazem todos os povos nos seus documentários. E o que nós faríamos se fizéssemos um documentário sobre o Colombo. Por isso a importância que a generalidade de países dá à realização de documentários.
Um documentário «simplório» trataria todos os factos em pé de igualdade. Mas isso não é uma vantagem específica para quem paga o documentário, e tudo o que se faz está ao serviço dos interesses de quem paga.
O recente livro do Saramago, Caim, insere-se no processo oposto. O Saramago, segundo ele mesmo diz (eu não li), faz uma leitura «literal» do que está escrito na Bíblia. Este é o procedimento «simplório». Os crentes fazem uma leitura «enviesada», uma interpretação do que lá está escrito de acordo com a sua crença. O «Caim» do Saramago representará um progresso para quem quer chegar mais perto da verdade. O que não significa que a sua conclusão esteja certa – como disse, os raciocínios simplórios são frequentemente errados. Mas têm a vantagem de não obliterarem os factos.
Um exemplo duma interpretação subtil duma parábola bíblica é a que apresentei aqui, sobre a expulsão do paraíso.
Estes raciocínios enviesados que continuamente fazemos não são desonestos, o enviesamento é essencialmente inconsciente; mas há raciocínios conscientemente enviesados – são os dos vendedores, por exemplo, quando querem vender um produto, são os próprios raciocínios do charme social, de muitos políticos, das religiões, dos interesses económicos. Alguns são só um bocadinho desonestos, outros totalmente. Por exemplo, o de que o plano de reforma de saúde do Obama iria matar os reformados e deficientes, posto a correr pela poderosa indústria de saúde americana. Estes enviesamentos visam os medos e os anseios das pessoas para conseguirem fins escondidos.
Eu chamo a estes raciocínios manipulativos exo-enviesados. Os raciocínios exo-enviesados têm «asas», espalham-se como fogo em madeira seca. E são tão difíceis de combater como ele.
Bem, há muito mais para dizer, quer em relação às fontes de enviesamento, quer em relação à análise da validade dos raciocínios. Mas, para já, ficamos com esta interessante questão: percebermos porque é que as nossas ideias são as que são. Elas não são fruto da nossa racionalidade mas da nossa «irracionalidade», ou seja, um produto do inconsciente, um produto «afectivo». Os raciocínios em que as suportamos são elaborados a posteriori.
Temos de aprender a percepcionar o nosso enviesamento para conseguirmos uma melhor racionalidade. Quando conseguirmos olhar para os factos sem presunção ou crença, estamos aptos ao raciocínio «simplório»; e quando conseguirmos passar além do «simplório», como um jogador de xadrez experiente, depararemos com as múltiplas possibilidades que o raciocínio subtil nos abre. Mas há um preço a pagar: tempo!
13 comentários:
O pecado original condenou-nos ao pensamento enviesado, eu pelo menos não consigo ser subtil… por vezes chego mesmo a babar-me.
manuel gouveia
pensar é uma chatice que só fazemos se for necessário ao prazer de algum pecado... por isso, todo o nosso pensamento é enviesado. Todo o pensador é pecador, quem não peca é porque não pensa.
Percebe agora porque tantos nos querem aliviar do fardo de pensar?
Excelente post.
O grande problema doa acto de pensar é o tempo que exige. E muitas vezes o esforço. O verdadeiro acto de pensar implica também abertura de espirito para a mudança.
ejsantos
É isso mesmo; é talvez por isso que a humanidade progride quando consegue tempo para pensar. Esse é o facto que é apontado como despoletador das civilizações da antiguidade.
E essa abertura para a mudança é indispensável, tem toda a razão. Se ela não existir, o pensamento está altamente enviezado, porque as conclusões possíveis já estão limitadas.
Um documentário recente no canal História demonstrava, com N provas, cada uma mais convincente do que a anterior, de que o Colombo era nascido da Sardenha, nobre de uma família caída em desgraça perante a coroa de Aragão que na altura era a soberana dessa ilha, conquistada a Génova. Era da família de dois papas humanistas. etc..
Não reparei no produtor do comentário, embora suspeito que não seria Espanhol.
Não houve argumentos contra nem informação relevante extra. Digamos que nem referia que a esposa seria portuguesa.
Fiquei convencido e obriguei a miúda a ver o programa.
Agora que ele é Catalão, é, por força de tanto empenho de nuestros hermanos.
Nos documentários só brilha a Defesa, falta a Acusação e nós ficamos como observadores em vez de Juízes, mesmo que enviesados.
Todos nós, e mesmo os historiadores e os cientistas, temos 'interesses' exteriores ao tema que estudamos e que nos condiciona. Temos dificuldade em desapegar-nos do resultado.
Deveríamos treinar a atitude do 'Advogado do Diabo' (usado no processo de canonização dos santos para fazer o papel de acusador, em oposição ao que defende a causa do santo). Mas mesmo o Advogado do Diabo já está enviesado, fruto de ser padre.
Precisamos de mais tempo para pensar. Isto agrada.
Como Montaigne já sabia, os "factos" são interpretações. Lourenço chama "mito" ao "facto que perdura". Não sei o que Einstein diria sobre isso, mas é com agrado que vejo o Alf vestir a pele de "cinico" filosófico, para quem nem a verdade tem valor objectivo, nem o valor tem verdade intrinseca.
Belo texto, Kamarada ! :)
Manuel Rocha
É um prazer e uma honra vê-lo por aqui de novo! Será que o vento vai voltar a enfunar as velas do «Bolinas»? O Bolinas faz muita falta na blogoesfera.
Muito a propósito o Montaigne somado ao E. Lourenço! Poderiamos dizer «um mito é uma interpretação que perdura». Pena é que tão poucas pessoas tenham disso consciência. Mesmo na mais pura ciência é assim. Por exemplo, o neutrino é um mito... mas vá lá explicar isso a um cientista... é pior que negar Deus a um padre. O Big Bang é outro mito. E sabe o que os faz perdurar? São ensinados como «verdades» à geração seguinte. Quem os contestar chumba nos exames. Só os verdadeiros «crentes» podem ter acesso ao título que os habilita a definir as «verdades». A perpetuar o mito. Que só cai com uma revolução, como disse Thomas Kuhn.
este será o blogue me destaque amanhã, segunda feira, nas ligações do 2711.
Alf
Post muito interessante :D
O preço a pagra é tempo... é natural, pois tudo leva o seu tempo e convenhamos que é complicado que um crente se liberte da sua crença para ver mais longe, pois um crente junlga que é e a sua crença que o faz ver...
Como diria Einstein é mais facil desintegrar um átomo que um preconceito ;)
Metódica
Obrigado.
Quando referi que o preço a pagar é o tempo referia-me ao seguinte: para fazermos um raciocínio subtil gastamos muito tempo, muitíssimo mais tempo do que para fazer um raciocínio simplório.
O jogador de xadrez que só analisa a primeira jogada, decide num instantinho; o que vai às jogadas seguintes precisa de muito mais tempo, tempo este que cresce exponencialmente com o número de jogadas.
Para fazermos raciocínios subtis temos de pensar nos assuntos durante muito tempo. É o tempo gasto a pensar que faz a diferença entre raciocínios subtis e simplórios.
Quando o Einstein disse que a diferença entre ele e os outros cientistas é que ele pensava nos assuntos mais tempo, estava a referir-se a isto; e a chamar-lhes simplórios.
Cheguei aqui via Em Livro.
Gostei particularmente deste post (o que li com verdadeira atenção dada a palavra Caim no título).
Assim com' sim acho que sou uma simplória enviesada.
Olá Susana
Obrigado pela visita e pelas palavras amáveis.
simplórios enviezados somos todos! Isso é o que resulta do funcionamento normal do nosso cérebro. Depois, se tivermos disso consciência, podemos interferir com a Razão e controlar.
O problema é que raramente temos disso consciência. Como tu tens, parabéns!!!
Este teu comentário deu-me uma ideia sobre o próximo post; em vez de falar da evolução das espécies, com interesse reduzido para muitas pessoas, vou falar do que representam a história do Caim e outras que se encontram na bíblia e que ninguém parece perceber o significado.
Recuso-me a perder tal post!!!
Enviar um comentário