sexta-feira, outubro 07, 2011
Dr. Jordan e o caso da Europa (III) (as Civilizações)
(continuação)
“Conseguir uma
sociedade onde uma parte minoritária da população seja escrava e isso seja bem
aceite por essa minoria e por toda a sociedade é um problema muito fácil??”– o
Wolfram olha-me com ar incrédulo, e fica-se, boquiaberto, à espera de qualquer
esclarecimento adicional; o careca contesta:
“Não estou a ver
em parte alguma do mundo civilizado alguém a ter escravos voluntários na
actualidade!”; o ruivo resolve falar também:
“Bem, talvez os
empregados das fábricas americanas no norte do México... ou os palestinianos
que trabalham em Israel...”. O careca interrompe, impaciente, evidentemente não
gosta de ser corrigido: “Sim sim, mas os palestianos vivem praticamente num
campo de concentração, não fazem parte da sociedade israelita, não passam de
modernos prisioneiros civis de guerra, e o México é um caso de deslocalização
muito especial; nós estamos a falar de escravos integrados na nossa sociedade,
algo muito diferente.” O ruivo cala-se, arrependido de ter aberto a boca.
“A razão porque
não conhece escravos voluntários na actualidade, no mundo dito civilizado, é
porque o facto de eles aceitarem a sua condição faz parecer que o não são; essa
é a habilidade”. Faço uma pausa.
“ Portanto, eles
existem à vista de toda a gente e ninguém vê... interessante, é isso mesmo que
queremos!” Um brilho surgiu no olhar do careca.
“Para percebermos
como se consegue esse tipo de escravos temos de perceber algumas coisas
essenciais da evolução das sociedades... vamos dedicar dez minutos a esse
assunto?"
Os três homens
trocam olhares de assentimento. “Estamos aqui para o ouvir, Dr. Jordan”.
Vou tentar não
entrar em detalhes, limitar-me ao essencial, o que não é fácil porque depois
ficam sempre coisas por explicar que acabam por gerar dúvidas. Inspiro. Ponho o
meu ar professoral, o ar Dr. Jordan nº 1, e começo: - “Sabem porque é que na
zona equatorial de África não surgiu nenhuma civilização relevante?”
Deixo a pergunta no ar e fico à espera duma
resposta. Hesitam, finalmente o Wolfram sugere: “A África equatorial é habitada
por povos muito primitivos, uma civilização exige organização, planeamento,
pensamento sofisticado”. Adoro quando oiço ideias simplórias.
“Pensemos um
pouco; quem já esteve nessa zona sabe que para comer basta estender o braço e
colher uma fruta; pode também caçar ou pescar. Não há frio nunca, não é preciso
ter roupa, nem casa, basta um abrigo para dormir. Ou seja, a sobrevivência está
garantida desde que não se interfira com a Natureza, que tudo providencia. Como
as pessoas não têm objectos de cobiça, não precisam de desenvolver sofisticadas
capacidades bélicas; nem sequer o território que ocupam pode ser considerado cobiçável
pois toda a zona é igual ou quase.” - Verifico pelas expressões que não disse
nada que não soubessem já; continuo:
“A solução óptima
para a zona equatorial é uma organização em pequenos grupos, familiares
essencialmente. Qualquer grande sociedade iria interferir com a Natureza e pôr
em risco a sobrevivência, seria uma grande estupidez. A organização familiar e
tribal é a organização ideal, perfeita, adequada, à zona tropical. Não é uma
ausência de civilização, é a civilização adequada. Mais do que isso, ela é a base de todas as organizações de maior escala, como veremos, pelo que vamos prestar alguma atenção às suas características.” - Calei-me, dei-lhes um
tempo para interiorizarem. Continuo:
“Esta organização
familiar é muito diferente da nossa; ela tem regras e organização, e perceber isso é
muito importante. O conceito de família dessa civilização é profundamente
estruturado, tal como as nossas modernas organizações, com espírito de equipa,
hierarquia e especialização de tarefas, avaliação, recompensa e punição. Para
além disso, há uma clara distinção entre os membros da família ou tribo e a
restante humanidade, ou seja, a família é uma nação nesta civilização, as
outras famílias são nações estrangeiras.” Falo lentamente, sei que eles têm
preconceitos a ultrapassar, é preciso dar-lhes algum tempo.
“O mais
interessante é que, no fundo, todos os conceitos que aplicamos na moderna
organização já estão presentes nas famílias da zona equatorial; as sucessivas
civilizações foram aplicando esses conceitos a escalas cada vez maiores ao
mesmo tempo que os foram retirando do âmbito familiar e substituindo por outros, como o conceito de «amor». Vejam como o termo «família» é usado para
identificar os membros de uma organização mafiosa ou os colaboradores de uma
empresa – é a extensão do conceito primitivo a outras escalas. Por outro lado, conseguir a
integração da família numa sociedade maior implica não só alterar as regras
dentro da família como alterar a atitude da família com as outras pessoas, sendo
necessário esbater essa fronteira para que o sentido colectivo possa emergir;
este ponto é da maior importância.” Percebo pelos olhares virados para dentro
que os três homens precisam de algum tempo para meditar sobre o assunto.
Aguardo.
“ Os ciganos,
como não abdicam da sua cultura familiar, tornam-se incompatíveis com as
civilizações modernas...”, um pensamento em voz alta do Wolfram.
“Exactamente, em
parte pelas regras internas da família e em parte pela sua atitude em relação
às outras pessoas; mas não só os ciganos; como compreenderemos daqui a pouco, a cada civilização corresponde um conceito de família e as duas coisas têm de estar em correspondência ou entram fatalmente em conflito.”
Os olhares estão de novo voltados para mim, posso continuar:
.
“O que
essencialmente caracteriza as diferentes civilizações é a escala espacial e
temporal a que têm de actuar para garantir a sobrevivência; esta primeira
civilização existe à escala espacial da família e temporal do dia. Já vimos a
escala espacial, e encontrámos coisas interessantes; vamos agora prestar atenção à escala temporal”.
Etiquetas:
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2 comentários:
Exactamente o que venho propondo e que será tema do meu próximo post, para resolver os maiores problemas da Humanidade, uma única e simples medida, a implementação do conceito de "Suficiencia".Eles sabem, mas não querem.
A forma como expõe as verdadeiras questões através de uma estória está muito bom.
HORIZONTE XXI
Exactamente!
Tenho verificado que as pessoas não têm noção nenhuma do que isso seja, não percebem que não se pode importar mais do que se exporta e que por isso há que fazer opções - não se pode importar batatas e carros, batatas podemos produzir, carros não, portanto, vamos consumir batatas nacionais para podermos importar carros
E, com algum esforço, podíamos fabricar tb uns carritos urbanos, eléctricos. Há para aí um projecto patrocinado pela EDP, creio, mas parece que é só para mostrar em exposições internacionais, porque na prática não existe nada - talvez seja mesmo só para desencorajar outros de se meterem nisso...
Os franceses fizeram o 2 CV para poderem ter um carrito para todos; aqui, o facto de se montar o Magalhães pôs logo os nossos deputados a fazer queixas no tribunal europeu e este ministro assim que pôde suspendeu logo o projecto. Coisas feitas em Portugal? Nem pensar!!!
Obrigado pelas palavaras amáveis.
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