quinta-feira, setembro 29, 2011
Dr. Jordan e o caso da Europa de classes (I)
(as aventuras do
dr. Jordan são pura ficção, desenhada sobre problemas da actualidade)
Ali estava a
esplanada; qual seria a mesa... ahh, aquele tipo acena-me, é ali.
Boas tardes;
doutor Wolfram, presumo – disse, enquanto aceitava a mão estendida daquele tipo
alto e magro, procurando reconhecer-lhes as feições. Rosto anguloso, cabelos
pintados como é típico nos executivos de meia idade, olhos pouco expressivos e
muito observadores. Pessoa habituada a mandar, alto quadro certamente. Não, não
reconheço esta cara, nem a dele nem as dos seus dois companheiros, ambos
bastante fortes, um careca, o outro arruivado. Nenhum sinal de simpatia, como é
habitual nos que querem passar a mensagem de que grandes responsabilidades pesam
sobre os seus ombros.
Boa tarde Dr.
Jordan, muito obrigado por ter aceitado encontrar-se connosco. Sente-se por
favor – disse cortesmente o Wolfram, indicando a cadeira que à sua frente me
esperava.
Sentei-me
calmamente, disfarçando a curiosidade em saber que mistério me tinha calhado
desta vez. É curioso como 93% dos meus clientes pretendem operações
inconfessáveis – seria bem melhor que fosse ao contrário mas infelizmente
parece que apenas os que prosseguem escuros interesses são suficientemente inteligentes
para me consultarem. C’ est la vie!
Esperava que o Wolfram me apresentasse os outros mas nada. Costumo
começar logo a falar, assumir o controlo da conversa, mas desta vez optei por
manter a matraca fechada e aguardei. O Wolfram chegou-se à frente e falou:
Numa conversa
sobre as dificuldades que atravessamos, alguém referiu que conhecia uma pessoa
que poderia ajudar-nos, um filósofo, o Dr. Jordan. Uma espécie de Poirot, com a
diferença de que usaria os seus talentos para encontrar soluções para os
problemas e não para desvendar mistérios, o que no fundo é a mesma coisa.
Sim, é verdade, é
quase a mesma coisa, há um ponto de partida e um ponto de chegada e queremos
saber como se vai de um para o outro – assenti, reduzindo a este aspecto as
comparações com Poirot. Ainda pensei dizer que os méritos que me atribuem
resultam simplesmente da metodologia de conhecimento da Filosofia, quase
ignorada desde o advento da metodologia científica. Mas optei por avançar no
assunto:
Mas qual é,
afinal, o problema? – displicente mas a
rebentar de curiosidade, no ar estava a promessa de um desafio à altura dos
meus talentos.
Como o dr. sabe,
o esforço para unir as duas Alemanhas tem sido um pesadelo cuja luz ainda não
surgiu ao fundo do túnel. Ainda não saímos deste pântano e um novo pesadelo se
desenha já no horizonte: a união europeia! A nossa experiência dolorosa com a
Alemanha do Leste vai ser multiplicada cem vezes, vamos ficar atolados em
problemas durante décadas, enquanto o resto do Mundo avança a passos largos.
Com certeza que a união europeia será bom para os outros países europeus, mas
para a Alemanha é que não é nada bom. Por outro lado, também não podemos
continuar isolados, não temos dimensão para competir com os EUA, a China, ou as
novas potências da Ásia e da América do Sul. O marco não tem dimensão para
competir com o dólar, pura e simplesmente.
Estou a perceber
– peguei na palavra, a deixa de silêncio isso exigia – precisam de uma união
europeia para terem dimensão mas não querem que essa união se faça à custa do
desenvolvimento da Alemanha. Querem portanto uma solução diferente da que tem
sido usada com o Leste... calei-me, o careca parecia querer dizer que não era
bem isso, se calhar era ele o chefe do grupo, pôs a mão sobre o braço do
Wolfram que lhe fez discretamente um sinal de assentimento. O careca
recostou-se, sossegado.
Repare dr. Jordan
– recomeçou o Wolfram, com ar de quem vai contar um segredo – a Alemanha
desenvolveu um forte estado social, onde toda a gente tem muitos direitos e
regalias. Sabia que o custo médio da nossa mão-de-obra é quase o dobro dos EUA?
Mas pior que o custo médio é o custo mínimo, o custo dos operários, pois os EUA
são campeões da desigualdade, só ultrapassados pelos países onde ainda há
pessoas que nem sabem o que seja o dinheiro. Na reunificação com a Alemanha do
Leste estamos a estender este estado social para lá. Agora pense: se vamos
fazer o mesmo em relação ao resto da Europa, já viu que a nossa competitividade
nas grandes indústrias vai desaparecer? Por agora ainda podemos recorrer à
mão-de-obra barata dos países do Sul, mas depois? Uma união europeia bem
sucedida acabará com essa mão-de-obra barata. Conhece as disponibilidades de
mão-de-obra barata que os nossos competidores têm?
Sim, tenho uma
ideia; os chineses têm ainda uma imensa população rural para tirar da miséria e
sobretudo sabem como gerir a taxa de câmbio, os países do sudeste asiático e a
Índia tem uma natalidade incontrolável que é um fornecedor ilimitado de
escravos, ou seja, de pessoas que trabalham por uma sopa, o Brasil está um
pouco como a China, os EUA têm em uma enorme população de pobres que não têm
hipóteses de deixar de o ser.
E não só –
interrompeu-me exaltado o ruivo – os EUA ocuparam o norte do México onde
beneficiam da natalidade descontrolada da população mexicana mas onde podem
impor a organização americana. Como é que vamos poder competir com isto?!
Desabafou, mais ruivas as faces que a barbicha.
Então e a
deslocalização para fora da Europa? Sugeri, embora já suspeitasse qual seria a
resposta; mas há que não deixar pontas soltas.
Fora da Europa?
Onde? As nossas fábricas precisam de trabalhadores com alguma especialização e
muitas condições, não são criações de frango para instalar em África; e os
países onde estes trabalhadores e estas condições existem há muito que abriram
os olhos, instalarmo-nos lá é estarmos a cavar a nossa sepultura; veja o caso
da China, mais de metade dos lucros das nossas empresas fica lá e estamos a
prazo, daqui a uns anos temos os chineses a fazerem-nos concorrência usando o
nosso know-how, as instalações que lá vamos deixar e a força económica que os
lucros das nossas empresas lhes estão a dar.
Ou seja, sem
mão-de-obra barata a vossa competitividade só pode ser conseguida à custa das
vossas margens de lucro e não por esmagamento dos salários, é isso? A pergunta
teria um quê de acintoso para outras pessoas mas eles nem repararam, «esmagar
os salários» é a sua preocupação quotidiana.
Claro! Isto assim
não se aguenta, veja que nos 100 mais ricos do mundo não há nem meia dúzia de
alemães! Indignadíssimo o ruivo.
Bom, mas então o
que desejam de mim? Afinal não querem um projecto europeu, também não querem
ficar isolados... que querem afinal? Perguntei, não por desconhecer o que eles
pretendem, que é evidente, e certamente que o vão conseguir; mas percebo que
eles precisam de um ouvinte que os ajude a concretizar o plano que já está
desenhado nas suas cabeças; e eu nunca nego ajuda aos poderosos.
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4 comentários:
...veja que nos 100 mais ricos do mundo não há nem meia dúzia de alemães!
Esmagador e brilhante. O plano Marshall, a negação total da estratégia alemã, fez com que os homens mais ricos do mundo fossem na sua esmagadora maioria americanos.
http://em2711.blogs.sapo.pt/1530782.html
antónio
Não sei se tem a ver com o plano Marshall se com o facto de os americanos serem campeões da desigualdade; ser uma das pessoas mais ricas do mundo pode ser importante para essas pessoas mas não é necessariamente um indicador da força da economia.
No caso deste história, tratando-se de pessoas que querem ser ricas, esse indicador é importante e mostra-lhes que as regras da sociedade em que vivem dificulta-lhes esse objectivo; por isso querem mudar as regras.
manuel gouveia
Obrigado pela referência ao meu modesto esforço para ver se percebo alguma coisa disto; espero conseguir chegar a algum lado que possa ser útil.
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