A reacção da Luísa à minha promessa de que iríamos finalmente falar da origem da Vida surpreendeu-me: levantou-se subitamente, com aquela ligeireza própria das mulheres nascidas nos primeiros dias de Abril, e saiu porta-fora. “Luísa, onde vais tu, ofendi-te?”. Luísa ri-se sem se voltar. Regressa passados uns instantes, ostentando orgulhosamente um livro na mão direita: “Vim preparada para esta discussão, trouxe a minha Bíblia!” esclarece. Pousa o livro na mesa. O Universo Inteligente, de Fred Hoyle. “Boa escolha”, digo, rindo-me. “Nada como ler as ideias das pessoas que realmente pensam, mesmo que discordemos delas”. “Discordar? Eu não discordo de nada do que ele diz”, afirma Luísa convicta.
“Ai ai” geme o Mário, “não bastavam o Jorge e as suas ideias, agora também tu...”. E ri-se. E continua, divertido: “Então explica-nos lá como começou a Vida!”.
“Onde começou? No Universo ora essa!”
“Eu disse «Como começou», não disse «Onde começou»!”
“Eu percebi-te muito bem, só que a tua pergunta «Como começou» pressupõe que começou na Terra. E na Terra é que ela não começou! Na tua cabeça a Terra ainda é o centro biológico do Universo, tal como antes de Copérnico a Terra era o centro físico do Universo”.
Luísa deixa cair o silêncio. Mário fica pensativo, obviamente não gostou mas obviamente não quer iniciar uma discussão com a Luísa. Se fosse comigo... A Ana e eu esperamos pela reacção do Mário, somos agora meros espectadores. Mário hesita, abre a boca para falar, suspende, finalmente diz:”Despeja aí a tua ideia toda que eu falo depois”.
“Então lá vai. Fred Hoyle baseia-se em duas coisas para pôr em causa as ideias darwinistas elementares. Uma é que a evolução das espécies não pode resultar de erros ocasionais na cópia dos genes. A taxa de erros de cópia é demasiadamente baixa. O objectivo do processo de cópia é evitar os erros, seria um paradoxo que o sucesso da Vida dependesse de uma deficiência do processo. Ele dá um exemplo”. Luísa folheia o livro. “Aqui está!” Luísa lê para dentro, percebo que prepara um resumo. Mais uns segundos e ela começa:
“Suponhamos que temos uma pequena secção do DNA de apenas 10 ligações e que existe uma outra sequência destas 10 ligações que gera uma nova proteína funcionante. Quantas gerações de cópia serão necessárias até que estas 10 ligações surjam pela ordem correcta? A resposta é: numa população de 100 milhões de seres seria necessário um milhão de gerações para que um dos seus membros surgisse com o rearranjo apropriado! E se o número de ligações for 20, seria necessário mil milhões de gerações!”
“Então o Fred Hoyle acha que não há evolução?” pergunta a Ana, com ar admirado.
“Não é bem isso! O que se passa é que o mecanismo de evolução tem de ser outro!”, Luísa satisfeita com a atenção que conseguiu.
“Outro? Qual?”, a Ana ía de espanto em espanto.
“Nós temos a ideia de que o código genético é específico de cada espécie, até de cada ser vivo, mas não é nada disso. Repara no seguinte: nós temos células muito diferentes, por exemplo a célula do cristalino do olho é muito diferente dum neurónio, ou duma célula hepática, ou óssea, etc; no entanto, todas estas células dispõem do mesmo código genético, o que as faz diferentes é que numas se executam umas instruções desse código, noutras, outras instruções”. “Sim, isso eu sei”, interrompeu Ana,
“Pois sabes, mas o que não saberás é que, tal como as células de um organismo partilham a mesma base genética, também as diferentes espécies partilham um vasto património genético, do qual só executam uma pequena parte. Os seres humanos só utilizam 5% do DNA de que dispõem! Por exemplo, nos humanos há pseudogenes, que são esses genes que aparentemente não usamos, idênticos aos que nas borboletas produzem a coloração das asas! Nas plantas há pseudogenes que produzem sangue nos animais!”
“Ena, que confusão! Como é isso possível?”
“As bactérias transferem constantemente material genético entre elas e até para células eucariotas, ou seja, para células que têm núcleo, como as nossas, pois as bactérias pertencem a um grupo mais primitivo, sem núcleo. Em consequência, todas as bactérias existentes no mundo têm acesso a um fundo genético comum”.
“Então são as bactérias que difundem os genes?”
“Não só.”
“Não?? Agora é que me deixaste baralhada! Não foi o que acabaste de dizer??”
“Há outro agente talvez ainda mais importante do que as bactérias”
“Ainda mais?”, a Ana não pára de se espantar, a biologia não é certamente o seu forte. Mas eu também estou a ficar espantado com a maneira como a Luísa está a conseguir expor as ideias do Fred Hoyle.
“Os Vírus!” exclama a Luísa. “ Os vírus são basicamente pedaços de código genético que usam a maquinaria celular para se reproduzirem. Podem destruir a célula onde se multiplicam mas podem também não o fazer e podem ainda simplesmente acrescentar os seus genes ao da célula que o alberga, seja uma bactéria ou uma célula como as nossas. Se o fizerem em células sexuais, os descendentes do ser infectado terão os seus genes aumentados. Além disso, muitos vírus e bactérias têm uma outra característica importante: são extremamente resistentes a condições ambientais diversas. O Fred Hoyle refere vários exemplos e cita o caso de bactérias que foram encontradas numa câmara de televisão que foi posta na Lua em 1967 pela nave não tripulada Surveyor III e recuperada 2 anos e meio depois pelos astronautas da Apolo XII.”
“Então Fred Hoyle acha que são as bactérias e os vírus os responsáveis pela evolução?” pergunta a Ana.
“Espera aí, não te precipites, falta-me dizer duas coisas. Uma tem a ver com a origem da Vida. O Fred Hoyle faz contas à probabilidade de se obter por acaso a sequência correcta das 2000 enzimas indispensáveis à vida. As enzimas são comuns a todas as formas vivas e sem elas as reacções químicas da célula seriam tão lentas que a vida seria impossível. Reparem, ele nem se preocupou com as 200 000 proteínas, bastou-lhe calcular a probabilidade de obter as 2000 enzimas para chegar um número fantasticamente pequeno, 10 elevado a -40000, ou seja, uma vírgula seguida de quarenta mil zeros, cerca de 40 páginas de zeros!
Ele dá um exemplo: suponham que num ferro velho podem encontrar-se todas as peças de um Boeing 747 completamente desmontado e que um furacão passa pelo ferro-velho; qual a probabilidade de, após a passagem do furacão, aparecer o Boeing pronto a voar? É deste tipo de probabilidade que estamos a falar.”
“E qual é a outra coisa?”, percebo impaciência na voz do Mário.
“A outra coisa importante é que muitos dos meteoritos contêm compostos orgânicos elementares, alguns deles exibindo estruturas regulares do tipo das apresentadas por alguns vírus...”
“...Estou a ver... então para ele a vida veio de fora da Terra, trazido por vírus e bactérias a bordo de meteoritos... acho que já ouvi falar disso!”, interrompe a Ana, um sorriso de alívio por estar finalmente a entender onde a Luísa queria chegar.
“Exactamente, para ele não há qualquer possibilidade de quer a geração quer a evolução da Vida ser produzida por fenómenos de acaso na Terra; logo, tem de vir de fora da Terra, e as bactérias e o vírus exibem as características próprias de um agente dessa função”.
“E qual é a diferença entre considerar isso e considerar que foi Deus?”, interroga a Ana, recuperando o seu estilo provocador. Fico curioso de ouvir a resposta da Luísa.
“Não tem nada a ver! O conceito de Deus não adianta nada à compreensão do Universo, não nos ajuda a compreender o fenómeno da Vida. Mas não podemos esperar encontrar num passo só a explicação, temos de ir percorrendo um caminho, dando muitos passinhos. O passinho do Fred Hoyle é este, o de que a vida e a sua evolução vêm através de bactérias e vírus vindos do espaço. Notem que eu fiz apenas o resumo essencial das ideias dele, ele detalha estas coisas que eu disse e vai mais longe, e coloca hipóteses interessantes, como a da inversão da seta do tempo...”
“...Ehh, não avances mais antes de eu falar!”, interrompe o Mário, “Acho que é altura de eu dizer umas coisas sobre esse assunto, nomeadamente como é que a Ciência ataca o problema da origem e evolução da Vida. Tu saberás muito das ideias do Fred Hoyle, mas talvez te falte o enquadramento da metodologia científica.”. Oláaa..., esta conversa está a ficar interessante... dá-me jeito que eles descasquem ideias sobre a Vida antes de eu avançar com as minhas. Aproveito para encorajar o Mário:
“Isso Mário, explica-nos lá o que a Ciência tem a dizer sobre o assunto!”
14 comentários:
amigos, tenho a impressão de vou deixar de pôr cores nas falas... está-me cá a parecer que assim que fica mais dificil de ler... que dizem?
Olá Alf.
Eu acho as cores facilitadoras e indutoras de movimento no texto, além de ser original e uma "marca" tua.
A ideia da importação de ADN extra-terrestre é bastante contestada, tanto por falta de evidências científicas, como por resistência a abdicar de paradigmas com séculos de existência (a verdade é que a teoria do Criacionismo continua a ter muitos adeptos, bem como o (neo)Darwinismo e o (neo)Lamarckismo).
Numa época em que o Homem parece estar prestes a criar inteligência artificial(tornar-se Deus?!), parece ainda desconhecer as suas próprias origens...
De onde viemos e para onde vamos? Penso ser umas das mais antigas questões que continua sem resposta.
Ainda bem que eu acredito em magia;)
Beijos mágicos***
Ideias interessantes, sim senhor...
Em relação ao texto: concordo com a feitixeira. As cores facilitam, e como ela diz, são uma "marca" sua. Mas com ou sem cores continuarei a ler os seus posts =)
Já tinha ouvido qualquer coisa sobre o facto de a vida na Terra poder ter vindo do espaço, mas não tinha grande informação sobre isso...
De qualquer forma é uma ipótese, que acho, que não deve deixar de ser considerada, até porque, para além de ser coerente, ainda não ha certezas sobre nada.
Quando se fala da origem da vida é natural que se recorra à Biblia, lá está explicado que ela não foi gerada na terra, mas que veio de fora, do céu!
É natural que os genes e seus códigos, digam de forma complicada, esta mesma simples realidade.
Interessante post. Sempre gostei muito deste livro do Fred Hoyle, por achar que levanta questões importantes. Esta resenha está excelente!
Muito didáctico e muito eficiente! :)
Mantenha as cores que o público feminino gosta. Todos os grandes mestres revelam um lado maternal e feminino.
«O Fred Hoyle refere vários exemplos e cita o caso de bactérias que foram encontradas numa câmara de televisão que foi posta na Lua em 1967 pela nave não tripulada Surveyor III e recuperada 2 anos e meio depois pelos astronautas da Apolo XII.»
Vou ser má-língua. Esta história parece-me uma grande tanga retirada do Reader's Digest. Essa não engulo.
O problema da origem da vida na Terra não se resolve com meteoritos e bactérias. Se for esse o caso, como é que foram criados os organismos? como foram parar aos meteoritos? como sobreviveram à entrada na Terra?
Quanto às cores: Ajudam bastante. Um dos problemas que tenho ao ler livros com muitas personagens é identificar os interlocutores.
Eu estou com elas, não porque goste das cores, mas porque se as abandonares vais ter que remeter as vozes para os personagens - por exemplo: disse Mário, ripostou Ana, espantou.se jorge.
Para além de tornar o texto mais pesado, acaba por quebrar o teu fio condutor e o de quem está a ler, embora uma vez por outra também ajude...
Esta questão da vinda da vida em meteoritos também não me é desconhecida. Eu cá sou como a Ana, tambem me perco na Biologia, mas o Fred Hoyle vai passar a ter lugar na minha biblioteca (quando tiver mais um bocadinho de tempo) só para tirar esta história a limpo com os meus próprios olhos!
indomável
OK, quanto às cores, vou continuar, embora a palete de cores me esteja a dar problemas é haver pessoas que se queixam que recem os posts por email em fundo branco algumas cores são ilegíveis.
Obrigado pela ajuda
Alguns esclarecimentos adicionais sobre as ideias do Fred Hoyle (notem que eu não sou especialista nelas, estou apenas a apresentar as ideias mais consistentes sobre a questão da origem da vida para depois apresentar algo de novo, que vai ultrapassar algumas das limitações do que conhece hoje)
O Fred Hoyle desenvolveu uma teoria alternativa ao Big Bang (foi ele que inventou o nome "big bang") que é a teoria do estado quase estacionário, onde existe criação contínua de matéria.
Ora nesta teoria a existência de matéria é ilimitada, não há um instante inicial; como também não há razão para supor que existem limites espaciais para o Universo.
Se a matéria existe desde sempre e o Universo é indefinidamente grande, porque milagre é que a vida haveria de surgir só agora???
Por isso ele diz que ver a Terra como o centro biológico do Universo é como a ver como o centro físico, apenas uma ingenuidade resultante da nossa ignorância.
O cálculo que ele faz da probabilidade de ocorrer a Vida por um mecanismo de acaso pode ser contestado de vários maneiras; mas a verdade é que ainda ninguém conseguiu apresentar um cenário e um cálculo que fosse minimamente razoável, que colocasse a probabilidade de a vida surgir na Terra ao menos ao nível da probabilidade de a próxima chave do euromilhões serem os 5 primeiros algarismos, por exemplo.
Isto não significa que a vida não surgiu na Terra, só significa que não podemos fazer afirmações categóricas sobre o assunto.
Tarzan, o Fred Hoyle era um tipo mesmo bom, teve muitos prémios e só não terá sido prémio Nobel por causa das suas ideias À margem dos caminhos da ciência. Por isso, o que ele diz, embora possa parecer estranho, é bem estudado.
Ele analisa com algum detalhe a possibilidade de as bactérias sobreviverem a uma entrada na atmosfera. São conhecidas bactérias que resistem a 300 ºC.
A capacidade de as bactérias sobrevirem em condições extremas é verdadeiramente espantosa. Foi até criado o grupo das "extremófilas" para albergar estas bactérias que sobrevivem nos ambientes mais bizarros.
Alémn disso, as bactérias, contrariamente aos virus, são muito competentes em reparar danos no seu código genético, podendo ultrapassar fortes doses de radiação.
Isto não significa que esta seja a verdadeira teoria sobre o assunto... na realidade não temos nenhuma teoria que não tenha falhas evidentes...
António, ehehe, o seu comentário está à altura dos seus créditos! Afinal, a versão bíblica é só uma parábola deste complicado processo de bactérias e virus...
Óptimo post, Alf! Estava à espera de que, mais dia menos dia, metesse o Fred Hoyle ao barulho. A alternativa que ele apresenta ao BigBang tem implicações muito ricas em diferentes áreas. Há mais de vinte anos que ando nas voltinhas delas.
Vá, avance que eu vou continuar à espreita. Um dia destes falremos melhor.
Acredito que haja organismos que possam sobreviver a condições extremas. Mas dois anos(!) na Lua? Hibernaram? Num ambiente tão mais extremo que os ambientes mais extremos da Terra? Não será mais plausível a hipótese de contaminação das câmaras após o seu regresso à Terra? Eu diria que isso até é inevitável. Não ponho em causa a credibilidade do Hoyle nem da sua teoria. Mas a história das bactérias que sobreviveram 2 anos na Lua....
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