sábado, maio 12, 2007

Educar para a autonomia


Educar para a autonomia... o que é isso? Para mim, duas componentes fundamentais o caracterizam.

Uma é desenvolver a capacidade de questionar, de procurar pontos de vista alternativos, de saber pensar à luz doutros interesses.


Por exemplo, que eu saiba, não se estuda religiões no nosso ensino. Ou estuda-se uma, sem sentido crítico. Não se estudam morais, estuda-se que uma é boa, a nossa, as outras estão erradas. Sendo a religião católica tão importante na nossa sociedade, analisa-se, por exemplo, os seus dogmas? Santíssima Trindade ... Pai, Filho e... Espírito Santo?!? Porquê? A mãe de Jesus era... Virgem? Que se aprende das outras religiões, que estão a ter uma importância fundamental na história actual?

Outra, é ensinar o que é a nossa sociedade. Antigamente, as sociedades humanas tinham uma estrutura relativamente simples, não era preciso ensiná-la, mas hoje é ao contrário: o Universo Humano, as regras, as forças, os agentes da sociedade que construímos atingiram uma elevada complexidade. Saber coexistir com isto tornou-se muito mais importante do que saber botânica ou mineralogia.


Por exemplo, os jovens saem do 12º ano com idade para votar. Mas que sabem eles do nosso sistema político? Que pensam do facto de os nosso deputados não responderem directamente perante os seus eleitores? que pensam da disciplina partidária? Têm capacidade crítica do sistema ou pensarão que esta é a única forma de uma democracia?


Quando olhamos para os outros países europeus vemos que, em muitos, estas questões já estão resolvidas, que há a preocupação de ensinar aquilo que é importante para a vida e responsabilidades que esperam os jovens. Então, porque é que cá não se faz isso?

(e quando se tenta qualquer coisa nesse sentido surgem logo as vozes críticas - estou a lembrar-me duma tentativa de discutir os "reality show" nas escolas...)


Laura-que-anda-na-chuva, esclareça por favor esta angústiante interrogação que paira na minha mente: estará o nosso ensino mais próximo do que é praticado nos países islâmicos do que nos países mais avançados?


Eu desconfio que o nosso ensino não prepara cidadãos mas súbditos e que não é por incompetência, é de propósito, é por ser esse o interesse dos grupos dominantes. O que liga este assunto à visão do António da sociedade humana como um ecossistema autónomo. A analisar num próximo post...

7 comentários:

antonio ganhão disse...

O que é importante é que a nossa visão de uma educação para a autonomia não se transforme numa moral.

Entre os muitos ódios da ministra da educação, estão as equipas de intervenção precoce, em que apenas sobreviveram uma escassa meia dúzia.

Estas equipas multidisciplinares trabalham com crianças em risco, crianças que podem nem ser deficientes mas mesmo assim estão em risco (ex: filhos de pais deficientes) A Ajuda de uma equipa multidisciplinar (educadora de apoio, assistente social, terapeutas, consulta no hospital, etc..), podem ser a diferença de uma criança que:
cresce e se torna um adulto responsável (e para dar um toque economicista, virá a pagar impostos e contribuir para as nossas reformas)
ou uma criança que se perde e se torna numa adulto dependente

A existências destes alunos no regular, sobretudo dos deficientes, ajudam a formar (nas crianças ditas do regular) uma maior aceitação da diferença, crescendo como adultos tolerantes, solidários e cidadãos.

Este é um exemplo de uma escola, que não está centrada em fazer cidadãos de sucesso, mas cidadãos de pleno direito.
Infelizmente este modelo nada diz à actual equipe de dirigentes, para quem ser jardineiro é uma vergonha quando se pode ser treinador de futebol.

alf disse...

O meu post é um pouco provocatório pois eu não sei o suficiente acerca do que se passa nas escolas e conto com o conhecimento dos meus comentadores para esclarecer a "provocação"

O que o António diz é muito importante e enquadra-se nas minhas suspeitas de que o ensino em Portugal continua empenhado em assegurar diferenciação social. Não por culpa dos professores, claro, mas dos decisores. Basta ver o que demorou o pré-primário, quando é mais do que sabido que sem um bom pré-primário os filhos dos analfabetos funcionais serão, maioritáriamente, analfabetos funcionais na sua geração. Sem um bom pré-primário, o analfabetismo funcional propaga-se através das gerações. Na realidade, a grande preocupação que eu vi evidenciada por pessoas "importantes" é "se todos se tornam doutores, quem será canalizador?"
Eu penso que isto só se vai resolver com exames nacionais, ranking de escolas e responsabilização destas perante a comunidade em que está inserida. Parte destas medidas estão a ser tomadas e estou convencido que as coisas irão melhorar.
No entanto, este tipo de medidas não tem a ver com a educação para a autonomia e aqui fico à espera que a Laura-que-anda-na-chuva diga de sua justiça.

Manuel Nunes disse...

O sistema de ensino trata de promover, em todos os graus, a reprodução dos valores sociais. É uma espécie de transmissão do código genético de uma sociedade ou civilização. Eu penso que isto funciona como o princípio de conservação das espécies. Uma "espécie social", porque está convencida da superioridade dos seus valores, tenderá sempre a formar indivíduos à semelhança do seu modelo. O ensino da História e da Literatura é particularmente importante no desenvolvimento deste processo. Portanto, a educação para a autonomia, em sentido lato, é sempre um mito. Mas não é só a escola a intervir no processo. A família é uma instituição muito mais poderosa e proficiente na reprodução dos valores ou de uma moral. Em matéria de moral somos todos filhos, nas sociedades ocidentais, da herança judaico-cristã, mesmo aqueles que não se revêem no Antigo e Novo Testamentos. A nossa moral está toda contida nos dez preceitos das tábuas de Moisés, por mais ateus ou sem religião que nos declaremos.
Portanto, eu estou seguro que o nosso ensino, qualquer ensino, "não prepara cidadãos mas súbditos". O facto de, a este respeito, deixares perpassar uma dúvida, deve ser uma questão de método, um reflexo do espírito cartesiano...

alf disse...

"Uma "espécie social", porque está convencida da superioridade dos seus valores, tenderá sempre a formar indivíduos à semelhança do seu modelo." Certo, mas apenas em relação aos 10% mais ricos - os que detêm o poder conformam o ensino de modo a transformar os filhos dos outros em súbditos e os seus em líderes. O controlo do ensino é um instrumento fundamental do controlo do poder, por isso os grupos que o visam têm estabelecimentos de ensino.
Portanto, o ensino está conformado aos interesses dos 10% mais, em prejuizo dos restantes 90%.
Fazendo os professores do ensino público parte desses 90%, porque não mudarem um pouco as coisas em favor dos seus próprios interesses?
Quanto aos valores judaico-cristãos, eles só servem para os 10& mais tentarem conformar o "povo". A nossa verdadeira herança é helénica, greco-romana, o que nos move, o que nos faz evoluir, é o pensamento de Sócrates, dos que se lhe seguiram e dos que o antecederam, porque a "civilização" foi algo que começou muito antes dos gregos . A nossa moral deriva da nossa inteligência, da nossa compreensão da sociedade humana, da articulação das necessidades e desejos. Com ou sem tábuas de Moisés tudo seria igual. O que caracteriza a nossa civilização é a sua racionalidade.
Nada disto será novidade para o amigo d.e., o seu comentário pretende ser um retrato da realidade e ironizar com a pretensão de mudar as coisas.
Mas eu atrevo-me a falar disto porque estou a ver que é possível, porque vejo a constante preocupação com o assunto em França, por exemplo, porque já vi documentários sobre escolas americanas onde isso é praticado. E bastou-me ouvir as opiniões das diferentes pessoas que entrevistaram a seguir ao 11 de Setembro para perceber que nos EUA haverá mais cidadãos do que súbditos. Há uma grande diferença entre a formação nos EUA e na Coreia do Norte, não lhe parece? Por isso, nada de desesperos, acreditemos que é possível a escola formar cidadãos autónomos e procuremos o caminho.

Rui leprechaun disse...

Pois muito me conta essa autonomia... olha o que o Mestre dizia! :)

Mas talvez ainda falte aí mais qualquer coisa, para além dessa capacidade de questionar e o ensinar o que é a nossa sociedade.

Ora aqui é que as minhas raízes orientais buscam o seu húmus... qual o meu alicerce, esse solo em que somos unos?!

Ou então, sendo pois discípulos de Sócrates, onde está esse autoconhecimento que é do saber o sustento?

Deveras, não será mesmo esse "Conhece-te a ti mesmo" outra faceta da afirmação de Cristo "O Reino dos Céus está dentro de ti"?

Mas há aqui uma dificuldade neste ensino da verdade. É que só um Mestre de si próprio pode incutir no outro esse desejo da autodescoberta. Ou ainda, como se diz numa metáfora do Oriente, só a vela acesa pode transmitir a sua chama a muitas outras velas apagadas.

Daí a milenar tradição do "Guru", literalmente aquele que leva da escuridão à luz. E que é um mestre pelo exemplo prático e não somente transmissor de um teórico saber.

Logo, por que não juntar tudo o que de melhor existe em toda a antiga tradição...

Rui leprechaun

(...para ensinar a mente e despertar o coração?! :))


PS: Ai, ai... sonhador até mais não... que Gnomito bobão e um grande mandrião!!! :D

Rui leprechaun disse...

Acerca da questão do ensino da ciência, encontrei agora um texto bem provocante e revelador de Richard Feynman, referente à sua experiência com o sistema de ensino no Brasil. E, ao que leio, quer-me parecer que também se aplica entre nós...

Havia tantas crianças aprendendo física no Brasil, começando muito mais cedo do que as crianças nos Estados Unidos, que era estranho que não houvesse muitos físicos no Brasil:­ por que isso acontece? Há tantas crianças dando duro e não há resultado.

Então eu fiz a analogia com um erudito grego que ama a língua grega, que sabe que em seu país não há muitas crianças estudando grego. Mas ele vem a outro país, onde fica feliz em ver todo mundo estudando grego ­ mesmo as menores crianças nas escolas elementares. Ele vai ao exame de um estudante que está se formando em grego e pergunta a ele: "Quais as ideias de Sócrates sobre a relação entre a Verdade e a Beleza?" ­ e o estudante não consegue responder. Então ele pergunta ao estudante: "O que Sócrates disse a Platão no Terceiro Simpósio?" O estudante fica feliz e prossegue: "Disse isso, aquilo, aquilo outro";­ ele conta tudo o que Sócrates disse, palavra por palavra, em um grego muito bom. Mas, no Terceiro Simpósio, Sócrates estava falando exactamente sobre a relação entre a Verdade e a Beleza! O que esse erudito grego descobre é que os estudantes em outro país aprendem grego aprendendo primeiro a pronunciar as letras, depois as palavras e então as sentenças e os parágrafos. Eles podem recitar, palavra por palavra, o que Sócrates disse, sem perceber que aquelas palavras gregas realmente significam algo. Para o estudante, elas não passam de sons artificiais. Ninguém jamais as traduziu em palavras que os estudantes possam entender.

Eu disse: "É assim que me parece quando vejo os senhores ensinarem 'ciência' para as crianças aqui no Brasil".



O americano, outra vez!

alf disse...

leprechaun

Muito interessante.

E é isso que se passa aqui também. Pessoas com formação em ciência, pelo menos até ao 12 ano, mostram grande dificuldade em pensar qualquer assunto da física. Até sabem as leis, as fórmulas, mas é como se fossem bonecos sem qualquer relação com a realidade. Decoraram aquilo para o exame ponto final. Exactamente como diz o Feynman