quarta-feira, maio 23, 2007
Vários dos comentários que tenho recebido contêm afirmações importantes para nos ajudarem a entender o porquê das coisas. Hoje resolvi postar um comentário da Indomável (colocado em Desvios 2) que mostra bem como o pragmatismo pode ser não só inútil como prejudicial. É pelo caminho da inteligência, da subtileza, que se avança. O do pragmatismo só dá para "safar". Se queremos avançar, temos de deixar fluir a nossa inteligência e alimentar o fascínio de que a Indomável fala ao concluir. Para deixarmos de pensar em "safarmo-nos" e passarmos a abraçar a Vida. Aqui vai:
Há dois anos dei explicações de lingua portuguesa e francesa a uma rapariga que estava com uma enorme dificuldade em acompanhar as aulas da sua turma, porque trabalhava ao mesmo tempo. O problema dela era que precisava de fazer o exame nacional e a professora estava a dar as aulas, resolvendo com os alunos exames de anos anteriores...Estas aulas não mais eram do que resumos dos exames que a própria professora tinha resolvido - ela limitava-se a dar as respostas aos alunos.Como eu não estava por dentro do programa do 12º ano, comprei um pequeno livro de preparação para os exames de lingua portuguesa, com análises das obras. Posso-te garantir que era uma bosta. O que será fazer um resumo sobre a obra de Cesário Verde sem nunca ter saboreado um dos seus poemas?Sabes o que fiz?Na internet pesquisei os autores estudados, imprimi um sem numero de textos - poesia ou prosa, consoante o autor - e pusemo-nos a ler cada um deles. Digo-te que aquela rapariga nunca tinha lido um texto de Pessoa e apaixonou-se pela mensagem. Ao fim de pouco tempo ela sabia distinguir de olhos fechados os pseudónimos de Pessoa, apenas pela sensibilidade transmitida no texto.
Quando fez o exame ia cheia de medo e depois de o ter feito ficou desconsolada porque nenhum dos colegas tinha respondido da mesma maneira. Nas nossas sessões limitei-me a ler com ela, a ver os textos à luz da história pessoal do autor, da sua biografia, dizendo-lhe que o escritor quando escreve não está a ver se o poema é decassilábico ou se a rima é emparelhada ou o raio que a parta. Ainda assim, era bom que ela soubesse o que isso era, para poder esquecê-lo quando lesse as obras. Ela lia e eu perguntava-lhe de quem ela pensava que era o texto, porque não lhe dava o nome, por isso te digo que ela distinguia o autor de olhos fechados!
Posso dizer-te ainda, que aquela rapariga teve uma das notas mais altas da escola dela nos exames nacionais de lingua portuguesa.Vais dizer-me que foi mérito meu, eu respondo-te que o mérito é todo dela. O trabalho foi dela, o interesse foi dela, eu apenas lhe transmiti um bocadinho de curiosidade e gosto pela leitura de autores que são analisados na escola como se fossem coisas chatas e sem interesse.Os nossos miudos interrogam-se porque raio têm de ler Herculano, Camões, Pessoa e mais tarde, quando são adultos e com um bocadinho de sorte até gostam de ler, descobrem livros empoeirados em alguma biblioteca ou num alfarrabista e apaixonam-se pelos clássicos, porque eles disseram coisas que parece estarem eles a descobrir agora.
A escola não ensina porque tudo é normalizado, tudo é ensinado como se fossem verdades absolutas. Se houve coisa que aprendi na Universidade e que me chocou imenso foi que não existem verdades absolutas. Se nas escolas isto fosse ensinado, garanto-te que a curiosidade seria enorme. Toda a gente teme a incerteza mas ela atrai-nos como a luz atrai as melgas. Talvez porque o fascinio de descobrir algo novo e diferente seja a luz que nos move...
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9 comentários:
Meu caro, você não percebeu nada! O objectivo é o de obter o conhecimento sem nunca ter lido as obras. Se para termos esse conhecimento tivessemos que ler as obras então não fazia sentido ensiná-las.
O que você e a sua aluna fizeram foi batota! Leram as obras e divertiram-se. Devia de ter vegonha em confessá-lo!
Acho que faço sempre batota quando ensino, porque nos divertimos imenso, eu e os meus alunos.
Só de me lembrar que quando leccionei lingua portuguesa a 7ºs anos os pus a teatralizar um texto de Gil Vicente e os miudos sabiam as falas como poucos actores, ainda me rio so de lembrar.
O facto é que este tipo de experiência leva o seu tempo, a preparação, a leitura dos textos, toda a azáfama à volta do mesmo, faz com que o programa não seja dado até ao fim. Quem paga?
O professor, é claro, porque tem que explicar muito bem o porquê de não ter seguido o programa até ao fim.
Se me importo? Um bocadinho, nunca mais consegui ficar colocada em lado nenhum (acho que deve ficar no cadastro!)
Mas tenho um imenso prazer em saber que muitos daqueles miudos fizeram algo que nunca tinham feito antes - ler um livro inteiro!
Outra alegria minha, foi ter substituido testes por composições, ou melhor, textos de ficção escritos por eles. A aversão foi tanta que estive quase para desistir, porquê escrever algo que tinham realmente de pensar, se podiam limitar-se a empinar uma matéria e acabava-se o problema?
Meus amigos, li textos que me deixaram perplexa, miudos com mundos interiores que nem eles próprios sabiam que tinham. Um deles tinha, dias antes, chorado convulsivamente porque eu lhe tinha dado uma nota baixa num teste... os pais nunca lho perdoariam (casos muito graves, posso garantir-vos).
O brilho nos olhos do miudo quando lhe disse que o texto dele tinha sido o melhor, que talvez um dia pudesse ser escritos, foi a paga suficiente para as dificuldades que passaria por não ter testes feitos.
No fim desse ano lectivo, esse miudo veio dizer-me que queria ser escritor quando fosse grande, nem que tivesse que estudar muito para o conseguir. Disse-lhe eu que teria de o fazer a vida toda e ele riu-se e respondeu-me... se os professores forem como a stora, eu não me importo!
Ainda hoje, quando os vejo, eles lembram-se daquelas aulas em forma de auditório de teatro. Outros lembram-se dos programas de rádio que os obriguei a organizar e que eles acabaram por fazer com um prazer formidável... aquela escola tinha um clube de rádio que nunca tinha funcionado antes - até que eu dei aos miudos a responsabilidade de criarem uma grelha de programas, o que incluia noticias, musica, o que eles achassem melhor. Eu ficava responsável pela organização das turmas, dos horários, da manutenção das instalações. Se tive trabalho? Algum, mas o prazer... foi imenso.
O que dá mais gozo é vê-los crescer, não fisicamente, intelectualmente! Eles até foram à biblioteca procurar livros sobre rádios, como fazer os programas... entrevistaram colegas, convidados que iam à escola para outros assuntos... A escola continuou com o clube de rádio activo, depois de eu sair - foi um sucesso!
Ainda hoje gosto de ensinar, ainda que particularmente, porque gosto de ver os olhos abrirem-se de espanto quando eles se apercebem de que afinal tudo é tão simples...
Alimentar sonhos a crianças é quase tão perigoso como ensiná-las a sonhar! Passam a querer "ser"... e pior do que isso estão dispostas a estudar para alcançar esse objectivo.
Começam a pensar, aprendem a pensar e tornam-se dissidentes de uma sociedade arrumada e bem comportada.
Deixem-nos sonhar em entrar nos Morangos ou serem como o Ronaldo, sonhar com aquilo que lêem nas revistas cor-de-rosa ou vêem nos telejornais. Sonharem ganhar um dia o Big Brother ou o euro-milhões.
Mas, ensiná-los a ser... isso é puro terrorismo.
Este blogue está subvertido... os comentários estão a ficar bem mais interessantes que os posts...
Ó António, só tenho um comentário a fazer a este seu comentário.
Fiquei muitos anos na idade dos porquês. Começou com o tradicional - porque é que o céu é azul, porque é que a lua só aparece à noite, porque é que a chuva é transparente, porque é que aparece o arco-íris. Depois fui crescendo e já ia perguntando, porque é que as meninas são diferentes dos meninos, de onde veem os bebés (com esta é que matei a minha mãe!), porque é que as raparigas não podem fazer o mesmo que os rapazes, porque é que tinha de usar saias se o que queria era vestir calças, porque é que não podia assobiar e jogar à bola, porque é que não podia ler os livros que queria, pporquê, porquê, porquê...
A minha mãe ficava fula comigo, o meu pai passava os dias e noites a trabalhar e portanto esta minha fase até praticamente a idade adulta nunca lhe causou perplexidade, frustração, medo ou qualquer outro tipo de sentimento.
Mas a minha mãe, bem... ela sentia-se frustrada por não conseguir responder. Lá ia comprando uns livros, enciclopédias e dava-mos para eu os ler.
Hoje sou mãe, a idade dos porquês nos meus filhos começou há bem pouco tempo e a intensidade das perguntas é a mesma mas as respostas são diferentes. Não os ataco com o "porque sim", porque tem de ser, porque sempre foi assim e tu não és especial para fazer diferente.
Na verdade, eu sempre fui diferente, fiz diferente do que era esperado de mim. Pelas respostas que me davam, se eu fosse menos indomável, teria desistido, deixado de insistir. Mas pelo meu carácter muito resistente à intempérie, mantive acesa a guerra e disputei sempre as minhas batalhas até ao fim, quanto mais não fosse pelo prazer da batalha, pelo prazer da contradição.
Hoje os miudos teem a papinha feita na escola. As respostas dadas são absolutas, porque sim!
Já alguma vez experimentou questionar um professor numa sala de aula em que ele lhe dissesse - espera lá, nunca tinha pensado nisso sob essa perspectiva!?
Dar murros em ponta de faca não agrada a ninguém e o provérbio que diz que água mole em pedra dura tanto bate até que fura, não foi feito para temperamentos jovens e inflamados.
Hoje quer-se imediatismo e mediatismo. Ser famoso pelo facto de se aparecer, é muito mais apelativo, do que ser famoso por se ser, por se fazer. Mas o vazio que isso traduz...
Talvez aqui se descubra o caminho virtual para um Portugal diferente
Um breve comentário ao comentário: mais importante do que os porquê, é o que se faz com eles, as respostas que se obtêm.
Saber lidar com os porquês, para além de ser um acto de pedagogia, é um acto de amor.
Talvez falte isso a muitos pais (sem que se apercebam) e isso reflecte-se na vida dos filhos (e na escola).
Grande salto em frente: passamos do "porque sim" para os "porquês" e agora para o "saber lidar com os porquês". Eu confesso que não me tinha apercebido da importância deste último passo. É isso que permite à Indomável os resultados que teve, soube lidar com os "porquês", para além do acto de pedagogia, foi um acto de amor. Saber+Pedagogia+Amor=Mestre. Que tal esta fórmula? Mas para a entender verdadeiramente é preciso ler os vossos comentários acima. É a fórmula daquele professor que fez a diferença no nosso percurso de alunos. Eu só agora percebi realmente isso.
O Amor é sempre difícil de conjugar na maior parte dos discursos e das fórmulas.
É o que eu digo... este fascínio é um perigo!
Ora bem, aparentemente isto nem tem assim muito a ver com o tema, mas recordei-me mesmo agora de uma frase belíssima de Isabel da Trindade, uma carmelita francesa que morreu muito jovem:
No entardecer da vida, só Amor permanece!
Logo, é eterno o que em seu nome fazemos...
Rui leprechaun
(...se bem dentro de nós já o vivemos! :))
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