domingo, outubro 25, 2009

Subtil, Simplório, Enviesado... e Caim


Ando há algum tempo para falar sobre o que é um raciocínio simplório, subtil ou enviesado e vai ser agora; a análise da Evolução continua no próximo post, onde veremos um facto importante que não entra na actual teoria da Evolução mas que é crucial. O tema deste post é importante porque nos ajuda a saber raciocinar melhor.

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Consideremos um jogador de xadrez. Face a uma disposição de peças no tabuleiro, logo uma hipótese de jogada lhe ocorre. Essa é a hipótese simplória. Se for um jogador principiante, faz essa jogada. Se não for, vai analisar as consequências. E vai testar outras jogadas. Até chegar a uma decisão. Essa é a hipótese subtil, porque já não resulta do que está directamente à vista.

Como sabem, ganha no xadrez o jogador que for capaz de perspectivar mais longe a jogada. Ou seja, o que for mais «subtil». A hipótese «simplória» é quase sempre errada, no entanto, é a que parece «lógica» a um espectador que só tenha conhecimentos superficiais de xadrez.

O Einstein disse que a diferença entre ele e os outros físicos é a de que ele pensava mais longamente nos assuntos; logo, era mais subtil; e frisou a importância do pensamento subtil numa frase famosa, a de que Deus é subtil mas não malicioso.

No entanto, não foi entendido, foi até escarnecido; porquê?

Porque nós não fazemos nem raciocínios subtis nem simplórios; nós fazemos raciocínios enviesados.

O nosso Inconsciente, com base nas informações que ele aceita como «verdade» e nos seus próprios critérios, de raiz instintiva, forma uma opinião sobre um assunto, atinge uma conclusão; em seguida o nosso consciente é mobilizado para provar que essa conclusão está certa. Os nossos raciocínios não servem um processo de descoberta mas um processo de demonstração de uma ideia, opinião, conclusão, certeza, estabelecida anteriormente a um nível inconsciente. Os nossos raciocínios são, portanto, enviesados, visam provar algo que já foi definido a priori.

A justiça utiliza isto como metodologia para fazer um julgamento na sua estrutura de defesa/acusação/juiz, onde tanto a defesa como a acusação devem fazer uma argumentação enviesada para o seu lado. É uma metodologia que funciona na fase de julgamento. Porém, já a Polícia não pode funcionar com base na mesma metodologia, o investigador policial tem de fugir dos raciocínios enviesados ou dificilmente desvendará algum crime.

Também em Ciência este problema se põe com enorme acuidade. Como fugir aos raciocínios enviesados?

A melhor maneira é a pessoa ter consciência disto e dos factores de enviesamento dos seus raciocínios; mas isso é difícil e subjectivo, é conveniente uma metodologia que dê alguma garantia de protecção contra os raciocínios enviesados. Então, a Ciência adoptou como resposta a este problema o raciocínio simplório, ou seja, constrói os seus modelos de realidade directamente sobre os resultados das observações. É assim a teoria Atómica, do Big Bang, da Relatividade, Electromagnética e de Ptolomeu. A excepção é a de Newton, que resulta de raciocínios subtis.

Isto é um progresso em relação a uma fase anterior, baseada em raciocínios enviesados, não é um retrocesso como poderão estar a pensar. O raciocínio simplório é menos mau que o enviesado. Claro que o «subtil» é melhor, mas ainda não demos esse salto a não ser pontualmente e é tão excepcional que classificamos de «génios» as pessoas que ultrapassam o que resulta directamente da observação.

Vou dar-vos exemplos. Ontem vi um documentário no Discovery Civilization, espanhol, que sustentava a ideia de que o Colombo seria um nobre espanhol, catalão. Apresentado como se fosse um estudo «científico», era assaz enviesado; por exemplo, a única referência a Portugal era a de que ele fora casado como uma nobre portuguesa e unicamente para provar que ele não poderia ser um plebeu genovês. Portugal nem aparecia num mapa várias vezes repetido, onde toda a península era Espanha. Pensarão: uns malandros os espanhóis! Na verdade, isto é o que fazem todos os povos nos seus documentários. E o que nós faríamos se fizéssemos um documentário sobre o Colombo. Por isso a importância que a generalidade de países dá à realização de documentários.

Um documentário «simplório» trataria todos os factos em pé de igualdade. Mas isso não é uma vantagem específica para quem paga o documentário, e tudo o que se faz está ao serviço dos interesses de quem paga.

O recente livro do Saramago, Caim, insere-se no processo oposto. O Saramago, segundo ele mesmo diz (eu não li), faz uma leitura «literal» do que está escrito na Bíblia. Este é o procedimento «simplório». Os crentes fazem uma leitura «enviesada», uma interpretação do que lá está escrito de acordo com a sua crença. O «Caim» do Saramago representará um progresso para quem quer chegar mais perto da verdade. O que não significa que a sua conclusão esteja certa – como disse, os raciocínios simplórios são frequentemente errados. Mas têm a vantagem de não obliterarem os factos.

Um exemplo duma interpretação subtil duma parábola bíblica é a que apresentei aqui, sobre a expulsão do paraíso.

Estes raciocínios enviesados que continuamente fazemos não são desonestos, o enviesamento é essencialmente inconsciente; mas há raciocínios conscientemente enviesados – são os dos vendedores, por exemplo, quando querem vender um produto, são os próprios raciocínios do charme social, de muitos políticos, das religiões, dos interesses económicos. Alguns são só um bocadinho desonestos, outros totalmente. Por exemplo, o de que o plano de reforma de saúde do Obama iria matar os reformados e deficientes, posto a correr pela poderosa indústria de saúde americana. Estes enviesamentos visam os medos e os anseios das pessoas para conseguirem fins escondidos.

Eu chamo a estes raciocínios manipulativos exo-enviesados. Os raciocínios exo-enviesados têm «asas», espalham-se como fogo em madeira seca. E são tão difíceis de combater como ele.

Bem, há muito mais para dizer, quer em relação às fontes de enviesamento, quer em relação à análise da validade dos raciocínios. Mas, para já, ficamos com esta interessante questão: percebermos porque é que as nossas ideias são as que são. Elas não são fruto da nossa racionalidade mas da nossa «irracionalidade», ou seja, um produto do inconsciente, um produto «afectivo». Os raciocínios em que as suportamos são elaborados a posteriori.

Temos de aprender a percepcionar o nosso enviesamento para conseguirmos uma melhor racionalidade. Quando conseguirmos olhar para os factos sem presunção ou crença, estamos aptos ao raciocínio «simplório»; e quando conseguirmos passar além do «simplório», como um jogador de xadrez experiente, depararemos com as múltiplas possibilidades que o raciocínio subtil nos abre. Mas há um preço a pagar: tempo!

terça-feira, outubro 13, 2009

Diogo dixit


Em comentário ao anterior post, o Diogo apresentou sumariamente o que pensa sobre o mecanismo da Evolução:

1 – Os vários indivíduos da mesma espécie recebem informação do ambiente e projectam uma estratégia de forma física para fazer face aos novos desafios e novas ameaças.

2 – Como os adultos já não se conseguem alterar transmitem essa pelas células sexuais.

3 – A reprodução sexuada vem permitir um máximo de interacção de quase todos os indivíduos com todos os outros. Ou seja os indivíduos estão a trocar ideias fisicamente.

4 – Esta troca de ideias tem dois objectivos: a) Escolher a melhor estratégia de evolução e aplicá-la a todos os indivíduos em simultâneo.

5 – A nova geração já nasce diferente e mais adaptada.

Analisemos. No ponto 1 diz que ;

1 – Os vários indivíduos da mesma espécie recebem informação do ambiente e projectam uma estratégia de forma física para fazer face aos novos desafios e novas ameaças

Isto é sem dúvida uma hipótese; mas será certa? Como podemos saber se é certa ou errada? Para tal, é necessário algo que suporte a hipótese e que possamos testar. Por exemplo, uma pessoa pode responder à questão “porque anda um carro?” com “porque tem um motor!”. Para que seja aceite como explicação, a primeira condição é que, de facto, haja um motor no carro. Note-se que não é uma condição suficiente, apenas necessária. Por exemplo, uma pessoa poderia também responder “porque tem um volante”; de facto, tem um volante, mas isso não faz o carro andar.

Para suportar esta hipótese de que “os vários indivíduos da mesma espécie ... projectam uma estratégia de forma física” é necessário apresentar um facto. Como é feito esse projecto de estratégia? Que órgão do corpo faz isso? Uma pista qualquer sobre o processo? Estará a basear-se no que aqui se disse sobre a inteligência da célula e dos sistemas de células?

O Diogo nada diz a este respeito. Sem isso, esta hipótese não é uma «explicação». Pode estar certa ou errada, mas o Diogo não nos aponta nenhuma maneira de o sabermos.

Reparemos agora no seguinte: seguindo a mesma linha de raciocínio do Diogo, poderíamos dizer igualmente que

Em face da informação do ambiente recebida pelos vários indivíduos da mesma espécie, um Deus tipo «Grande Engenheiro» projecta uma estratégia de forma física para fazer face aos novos desafios e novas ameaças

Não é assim que um Grande Engenheiro age? Lançando modelos, verificando como se adequa ao ambiente, e introduzindo melhorias?

Ou, ainda, em vez de um Deus poderíamos considerar uma avançada civilização extraterrestre.

Que factos apresenta o Diogo para podermos pensar que a hipótese dele é melhor do que qualquer uma destas? O que as distingue, nesta altura, é apenas a sua adequação às presunções de quem as faz. Digo «nesta altura» porque aqui o Diogo lança uma hipótese nova que ainda não foi investigada. Quem sabe se na sequência de paciente trabalho de investigação não se descobre algo que a suporte? Só que, nesta altura, não há a mínima pista.

Depois, o Diogo diz que:

2 – Como os adultos já não se conseguem alterar, transmitem essa pelas células sexuais.

É importante saber se as células sexuais de um ser contêm qualquer informação diferente da que originou esse ser. Uma informação que resulte da experiência de vida do ser e não de um erro de cópia ou outro processo independente dessa experiência. Mas não sabemos isso. Afirma-se que não contém, essa é a base da argumentação anti-Lamarck, mas não conheço prova convincente. De qualquer forma, como assim é aceite, quem defender que as células sexuais podem conter informação derivada da experiência tem de pelo menos indicar um mecanismo através do qual tal pudesse acontecer. E isso o Diogo não faz. Um caso julgado só volta a julgamento perante factos novos.

Continuando:

3 – A reprodução sexuada vem permitir um máximo de interacção de quase todos os indivíduos com todos os outros. Ou seja os indivíduos estão a trocar ideias fisicamente.

4 – Esta troca de ideias tem dois objectivos: a) Escolher a melhor estratégia de evolução e aplicá-la a todos os indivíduos em simultâneo.

Será que não existe evolução sem reprodução sexuada? Bem, no último número da Nature vem um artigo, creio que co-autorado por um português, que mostra que as células dum cancro de pulmão apresentam uma elevada taxa de mutações... será que evoluem?

Uma coisa parece clara: há reprodução sexuada sem evolução que se note – na verdade, é o que há mais, a inteligência das tartarugas não parece ter sofrido evolução nos últimos 100 milhões de anos, por exemplo.

Podemos questionar: a troca de informação genética será condição necessária mas não suficiente? Será que, como o Diogo diz, essa troca não é «ao acaso», obedece a uma «estratégia»? O Diogo nada diz sobre como pode essa estratégia concretizar-se.

Notem que nada disto significa que o Diogo esteja errado. Apenas que ele não apresentou uma «explicação», apresentou uma «hipótese» sem ter apresentado qualquer prova. O que pode levar uma pessoa a considerar, nesta altura, que a hipótese do Diogo seja melhor do que a Criacionista, por exemplo? Nada, a não ser as crenças pessoais de cada um.


Qual é a diferença estrutural entre esta ideia do Diogo, o Criacionismo e a teoria do Darwin?

Vejamos este exemplo: imaginemos que uma pessoa explica o facto de um carro ser capaz de se mover dizendo: tem um motor, que é um dispositivo que transforma em movimento o calor que um combustível liberta quando arde.

Bem, ainda há muito por explicar. Transforma como?

No entanto, já foi dado um passo muito significativo. Agora, podemos pôr-nos a pensar, buscar uma forma de transformar calor em movimento. Temos uma peça do puzzle e temos um caminho de pesquisa. Se a hipótese fosse apenas «porque tem um motor» não tínhamos quase nada, essa hipótese não representa um «conhecimento» relevante (quem não sabe o que é um motor fica na mesma).

Darwin quase fez isto. Ele deu uma pista sobre como o motor da evolução poderia funcionar. Os descendentes nascem com variações e a natureza selecciona as mais adequadas. E podemos testar que assim acontece. O Darwin encontrou uma peça do puzzle da evolução. O Darwin mostrou que um processo de inteligência elementar, «geração de hipóteses + selecção», é usado na adequação dos seres vivos ao seu ambiente.

O Darwin não apresentou nenhuma teoria sobre o que produz as variações que os seres vivos apresentam. Isso é algo que ainda é alvo de pesquisa. Não se conhecendo nenhum mecanismo capaz de produzir mudanças genéticas capazes de suportar a Evolução, afirma-se que essas mudanças são por acaso. As experiências mostram que as mudanças por acaso só originam seres deficientes, como seria de esperar. Portanto, não se sabe, a Ciência não faz a mais pequena ideia, de como se produzem nos seres mudanças capazes de suportarem um processo evolutivo. O Diogo está a propor que na geração das “variações” dos descendentes não está um processo de acaso ou erro mas um processo de Inteligência.

Bem, na verdade, isto é óbvio, mas só a coragem de o afirmar já merece destaque. Quem não leu os posts em que tentei estabelecer que Inteligência é uma propriedade natural vai-se rir, mas vozes de burro não chegam nem ao Céu nem ao Futuro.

O Diogo pensa que um processo de Inteligência destes têm de se alimentar das consequências das modificações introduzidas, logo considera que a experiência de vida tem de alguma forma fazer parte do processo. Que há um mecanismo de «feedback» entre as alterações introduzidas e as suas consequências. Aqui, ele difere de Darwin, que considera que a geração de variações e sua selecção são processos independentes. A verdade será provavelmente algo mais sofisticado do que qualquer destas hipóteses.

Em conclusão, ao apresentar esta hipótese sobre a evolução das espécies, o Diogo actuou como um Descobridor, pois libertou a mente de ideias que certo «mainstream» papagueia sem perceber e aceita sem analisar e teve a coragem de pensar pela sua própria cabeça. Mas a tarefa do Descobridor é árdua, sem fazer o caminho todo que vai da ideia à prova o seu esforço é inútil. E, neste caso da Evolução, a tarefa é grandiosa demais para as nossas capacidades. A opção é procurar dar pequenos passos, ir juntando pecinhas do puzzle.

Foi o que o Darwin fez, ele só encontrou uma pequenina peça do puzzle, a de que um processo de variação das características seguido de um processo de selecção pode suportar um processo evolutivo. Como se gera essa variação, esse é o grande mistério.

O que sabemos da Evolução, na verdade, é ainda tão pouco e incipiente que corresponde quase à resposta «porque tem um motor». Sabemos que há Evolução, como sabemos que um carro anda; e sabemos que há um mecanismo de variações e selecção como sabemos que o carro tem um motor; mas estamos como a pessoa que não sabe o que é um motor porque nós também não sabemos como se geram essas variações. E é aqui que está a verdadeira questão.

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Entre o Presente e o Futuro está uma Terra de Ninguém, um deserto onde perdemos as nossas crenças e limpamos a cabeça dos conceitos e das “verdades” do Presente; estamos a acabar a travessia desse deserto, à frente começam a surgir pequenos oásis de Futuro.