(continuação da conversa com o Hans; aqui ele começa a explicar porque é que a sociedade ocidental tem a estrutura que tem e como evolui)
Então queres
saber porque é que a Alemanha está tão empenhada neste ataque aos países do
Sul... - O Hans suspendeu o que ia a dizer; os seus olhos cinzentos
imobilizaram-se, apontando ao longe por sobre o meu ombro direito; durante uns
segundos o tempo parou, como se o Hans fosse um robot que tivesse ficado sem
energia - Não, espera, tenho de começar por esclarecer uma coisa que podes não
saber. - Pelos vistos, foi activada a energia de reserva, fantasiei… Espero em
silêncio.
As pessoas que
não dedicaram especial atenção às questões económicas estão convencidas de que
a economia liberal se auto-equilibra pois que quem produz precisa de
consumidores e por isso a existência de pobres seria contrário aos interesses
de quem produz. O Hans especou, a olhar para mim atentamente. Admiro-me: E não é? Bem sei
que num sistema competitivo as empresas estão sempre a lutar pelo máximo lucro,
mas o empobrecimento das pessoas, o crescimento desenfreado da desigualdade é
contrário aos interesses de quem produz, dos empresários, dos ricos, embora
muitos pareçam não perceber isso.
Um sorriso varre
a cara do Hans. Um sorriso meio trocista, meio triste. Fiquei intrigado.
Estás muito
enganado, tal como a generalidade das pessoas. - Inspirou fundo, preparando o
esclarecimento, enquanto eu sentia um ar aparvalhado a colar-se à minha cara. -
O grande equívoco é pensar que o consumo depende do número de consumidores. Não
é verdade. O consumo depende da riqueza dos consumidores. Da riqueza total, não
interessa a sua distribuição.
Não interessa?
Como assim? Há um limite para o consumo individual….
Estás enganado.
Vamos ver exemplos. Carros por exemplo. Mudas de carro de quanto em quanto
tempo?
Bem, eu sou um
caso especial… o meu carro anterior durou uns 16 anos … este tem 10 anos…
E está velho? -
interrompeu o Hans.
Não, nada –
entusiasmei-me – está como novo. Tirando uns arranhões é claro.
Qualquer
carro funciona sem problemas uma dúzia de anos ou mais; no entanto, os teus
colegas, amigos, familiares, fazem o mesmo que tu?
Não – assenti –
quase toda a gente muda de carro de 4 em 4 anos…
Achas que isso é
necessário?
Claro que não!
Pois não. As
pessoas mudam de carro porque têm dinheiro para isso; e porque é criada uma
pressão social que os faz sentir essa necessidade – uma necessidade meramente
psicológica. Ou seja, tanto faz ter uma população onde a riqueza está
distribuída por igual e compra carro novo de 8 em 8 anos ou concentrar a
riqueza em metade da população e convencê-la a comprar carro todos os 4 anos.
Sim, o consumo é
o mesmo … mas isso não deixa deter um limite, não estou a imaginar as pessoas a
mudarem de carro de 2 em 2 anos, não é?
Não estás? - O
robot tornou-se subitamente humano, o Hans deitou a cabeça para trás e soltou
uma sonora gargalhada - Muita gente nos EUA, por exemplo, muda de carro todos
os anos, não é de 2 em 2 anos!!! Mas não fica por aí, alguns coleccionam
carros, é um para a estrada, outro para a cidade, um para cada filho, outro
para férias, pois tem de ser grande… e também há que acertar a cor do carro com
a toilette não é verdade? Afinal, o carro não é mesmo que um par de sapatos??
Não serve para ir de um sítio para outro? A mesma razão que leva as pessoas a
terem vários pares de sapatos aplica-se aos carros, haja dinheiro para isso!
Fiquei siderado.
Nunca me tinha ocorrido tal. Mudar carro de 4 em 4 anos já me parecia uma coisa
ridícula, mudar de carro como quem muda de sapatos parecia-me surrealista; mas
ele tinha razão…
Portanto, já
viste quanto se pode concentrar a riqueza, sem que isso afete minimamente o
consumo. Ouvia o Hans ao
longe… a minha cabeça ainda estava atordoada com a ideia de as pessoas usarem
carros como se fossem sapatos… claro que a ideia de as pessoas terem vários
pares de sapatos também deve fazer confusão às pessoas que dantes só tinham um…
e o outro para a missa… lembrei-me então dos telemóveis, como toda a gente que
conheço muda constantemente de telemóvel... mais de 6 meses com o mesmo já é
record... Mas vejo que o Hans tem razão, o consumo depende da riqueza total,
não da sua distribuição.
Ok, concordo
contigo – digo, saindo do meu torpor meditativo. - Tanto faz que a riqueza
esteja concentrada ou distribuída para efeitos do consumo, mas o que é que
tiras daí?
Ahhh – os olhos
do Hans abriram-se a acompanhar um largo sorriso – é que agora há o outro lado
da equação!!!
Outro lado?
Sim. O que
interessa não é o consumo, é o lucro, a relação entre o preço de venda e de
custo. O outro lado da equação é o custo de produção - os olhos abriram-se
ainda mais, como se estivesse a revelar um segredo crucial – repara, para
minimizar o custo da produção, o que é buscam constantemente as empresas?
Mão-de-obra
barata…- arrisquei.
Exactamente!
Agora diz-me qual é a distribuição de riqueza que maximiza o lucro? É a
distribuição por igual?
Senti-me um aluno
mal preparado a enfrentar o examinador numa prova oral - Não, não é a
distribuição por igual, é preferível, numa ótica de lucro, ter a riqueza concentrada numa parte da
população e a restante ser pobre para fornecer mão-de-obra barata.
E-xa-ta-men-te!–
exultou o Hans - A sociedade da economia liberal é uma sociedade que começa por
ser igual e depois divide-se em 3 classes: os ricos, a classe média e os
pobres.
Fez-se-me luz.- Então é por isso, exclamei; a sociedade começou por duas classes, senhores e
plebe; quando começou o comércio, o consumo, estratificou-se em 3 classes
porque é o modelo que melhor serve os ricos!
Bem, ainda não te
disse tudo – o Hans fez um sinal com a mão, como quem diz “acalma-te” - A
concentração da riqueza tem ainda outra consequência.
Outra? Não estou
a ver...
É o seguinte: as
pessoas querem comprar coisas tão caras quanto possível; compram sempre o carro
mais caro que podem, não é verdade?
O carro, o
telemóvel, a viagem de férias... tudo!
Exacto. Então a
concentração de riqueza abre mercado para produtos de luxo, produtos de preço
exorbitantes... que geram lucros exorbitantes. Quanto maior a concentração de
riqueza, maior a diversidade de produtos que se podem produzir e maiores as
margens de lucro. Os ricos geram entre si uma economia própria, que se sobrepõe
à restante economia. Isto tem uma consequência: retira peso económico à classe
média. A indústria automóvel não precisa de produzir carros de gama baixa, pode
deixar isso para os chineses, o que dá dinheiro são os carros de gama alta, as
casas de gama alta, a moda de gama alta, etc.
Queres dizer que
a classe média pode desaparecer? Ficarem só duas classes, a dos muito ricos e
dos pobres?
Admirado? É essa
a tendência clara em vários países, nomeadamente EUA, Canadá e Inglaterra e
Austrália. Não conheces o famoso documento do Citygroup sobre a Plutonomia?
Plutonomia? Nunca
ouvi tal...
Nunca ouviste
tal? Esse documento é talvez o documento mais importante que já se fez sobre a
nossa sociedade! – um riso de satisfação explodiu na face do Hans. – É um
documento do Citygroup a aconselhar os seus clientes a investirem nas empresas
que produzem artigos para ricos; na verdade, não diz nada que não se saiba, ou
seja, que os 10% mais ricos representam mais de metade da economia, que o
conceito de consumidor médio já não tem interesse porque são os ricos que
comandam o mercado; e que será cada vez mais assim, o baixo custo da
mão-de-obra assegurado pela globalização. A importância deste documento é vir
de dentro do sistema, não ser uma opinião de pessoas que contestam o sistema e
sempre descredibilizadas por essa razão.
Pois, não
conheço...
Então não deixes
de ler. Ele retrata lindamente o como e o porquê da transformação da sociedade
de 3 classes em duas: Ricos e Pobres. Mas isso já é passado, a evolução da
sociedade neo-liberal não acaba aí, a fase seguinte já se iniciou e isso é que
é verdadeiramente dramático, muito mais do que possas imaginar.
(continua)