quinta-feira, dezembro 20, 2012

A Democracia agoniza


(continuação da conversa com o Hans)

Espera lá – atalhei o entusiasmo do Hans – então tu achas que a classe média está condenada? Vai ficar uma sociedade só de Ricos e Pobres? Não pude deixar de soltar uma risada - Custa-me a acreditar nisso, a nossa sociedade está estruturada em torno da classe média...


O Hans inspirou fundo; soou-me como se ele estivesse e pensar “deixa-me ir com calma para iluminar as ideias deste ingénuo...”. A classe média foi sempre um joguete dos Ricos, existiu na medida em que lhes convinha para manterem os seus privilégios. Faz parte do processo de enriquecimento dos Ricos e do processo de manutenção do Poder. O crescimento da classe média no Ocidente a seguir às guerras mundiais deveu-se à necessidade de os Ricos fazerem frente ao comunismo. O comunismo nasce para combater o poder absoluto e esclavagista dos Ricos e a única maneira de conseguir travar o avanço do comunismo era deixar os povos melhorarem as suas condições de vida, até aí infames e miseráveis. Para isso, era preciso deixar as pessoas irem enriquecendo, deixar crescer uma classe média.

Essa visão é muito niilista... nos EUA houve muita preocupação com a igualdade de direitos...

Sim, no princípio. É que enquanto a Europa já é uma sociedade de Ricos e Pobres há muitas gerações, os EUA foram formados pelos pobres que fugiram da Europa, por isso os Ricos dos EUA são recentes e nas bases ideológicas dos EUA anda tens os princípios que os pensadores de uma sociedade melhor sempre defenderam, já os encontras na Revolução Francesa; e os EUA preocuparam-se muito em desenvolver regras que limitavam o crescimento da desigualdade, que promoviam a redistribuição de riqueza, sobretudo após a crise de 1930.

Claro! Regras inerentes ao sistema capitalista que promoviam a distribuição de riqueza pelo próprio sistema, nomeadamente a distribuição de dividendos nas sociedades por acções ou a participação dos empregados na empresa, uma prática muito comum nos EUA; e, antes da globalização, obrigavam as empresas que se tornassem grandes demais a cindirem-se. O que aconteceu é que deixaram os mecanismos de supervisão nas mãos dos financeiros e estes destruíram e perverteram tudo através da especulação financeira.

Pois... e ficaram estupidamente ricos! É isso mesmo que eu te estou a dizer...

Fiquei um pouco baralhado... que quer ele dizer afinal? Resolvo fazer um ponto da situação: - Então a tua ideia é a de que a classe média europeia, que é uma sociedade dominada há muitas gerações por uma casta de Ricos, foi criada apenas para fazer frente ao comunismo e que agora que o perigo comunista desapareceu deixou de ter utilidade para os Ricos e vai desaparecer? Vamos voltar a ser uma sociedade de Ricos e Miseráveis?

Sim. O vosso PCP sempre percebeu isso, por isso é que se manteve fiel às suas raízes, sabe muito bem que a Europa voltará a ser o que sempre foi, uma coutada dos Ricos.

Sabes, não é isso que eu penso; eu penso que se está a construir uma sociedade global e que portanto muitas das coisas a que estávamos habituados em termos de país perdem o sentido, não têm lugar numa sociedade global; o que está a acontecer é essa transformação, apenas isso.

Seria bom... mas há um problema... neste sistema em que cada um trata dos seus interesses ganha sempre o mais forte, ou seja, o mais rico; a perversão de que falas não foi um erro, um acidente de percurso; enquanto existir a mentalidade de cada um por isso, faças as regras que fizeres elas serão sempre pervertidas.

Eu tenho muita confiança na Democracia. Se a maioria das pessoas se sentir a empobrecer, votará em políticos que lutem contra esta situação; e eles aparecerão certamente, porque quem ambiciona o poder defende sempre a ideologia que lhe dá acesso a ele; foi o que o Hitler fez.

Sim... – um sorriso maroto elevou os cantos da boca do Hans – quem quer o Poder defende sempre a ideologia que lhe dá acesso a ele... foi exactamente isso que os Ricos fizeram e estão a fazer na Europa...

Fizeram como? A Europa é uma democracia, logo comandada pelas maiorias, não pelas minorias!!

Ai meu Deus – desabafou o Hans, com aquele ar de desalento que se tem perante um ignorante sem remissão – como tu estás enganado!! Ainda não percebeste quem manda na Europa?

A... Merkel...

Claro! Na Europa manda quem ganhar as eleições alemãs! Para ter o poder na Europa basta controlar a classe média alemã; não estás a ver? Na Europa, o poder político depende de apenas 10% dos seus cidadãos.

Não é assim tão simples – ripostei indignado – Se os governos dos vários países não conseguirem segurar as suas classes médias perderão as eleições! – disse, com ar de quem sabe do que fala. A minha segurança desmoronou-se de imediato perante a gargalhada do Hans.

E onde é que os países têm governo?! Um governo só o é se tiver poder; e só há duas maneiras de ter poder: por via militar e por via económica. Ora a via militar está fora de questão e a via económica... já não depende dos governos! Os governos não têm poder! E rematou com outra gargalhada.

Estás a referir-te aos estatutos de BCE? Tinha de ser assim, para que o sistema financeiro europeu não ficasse dependente dos interesses particulares de cada país! Como é que querias caminhar para uma globalização com um sistema financeiro ao sabor dos interesses de cada país?? Com esta senti que marquei pontos na discussão. O Hans ficou subitamente sério. Quase agressivo, respondeu:

Tu já reparaste bem na enormidade do que acabas de dizer? O sistema financeiro ficaria dependente dos interesses de cada país??? Claro!!! Ficaria dependente dos interesses da maioria das pessoas! É isso a democracia!! Por esse raciocínio também podíamos acabar com a ONU e entregar o mundo aos EUA, ou acabar com as eleições em cada país. Ou tornar os militares independentes do poder político, porque não?
O que se passa na Europa é que o poder foi totalmente entregue aos Ricos, tornou-se independente do voto dos cidadãos. Quem manda na Europa são os grandes financeiros porque os cidadãos europeus não têm qualquer espécie de poder sobre eles, o seu voto é totalmente inútil. Pior: agora, a supervisão dos financeiros passou inteiramente para eles, tornaram-se intocáveis!

A teimosia impedia-me de concordar com o Hans; tentei encontrar argumentação contrária - Não estou nada de acordo contigo; em Portugal, por exemplo, é diferente ter um governo PSD ou PS – disse, inseguro a lembrar-me do Seguro... O Hans poupou-me agora à gargalhada e com ar paternalista “esclareceu-me”:

Em Portugal, quem manda é a troika, ou os patrões da troika, os governantes são meros executantes das decisões deles; e é indiferente o governo ser PS ou PSD. Os eleitores têm uma única opção: ou votam na submissão ao poder dos Ricos ou votam pela saída do Euro. Mas como as pessoas têm horror à mudança, é garantido que continuarão no Euro, a caminho da miséria total.

Acho esse panorama muito negro; afinal os países europeus são Estados Sociais e é intrínseco ao Estado Social a melhoria das condições de vida de toda a população; basta pôr os olhos na Dinamarca que se transformou num dos países mais ricos do mundo sem dispor de quaisquer recursos... mesmo a Troika diz que se quisermos ter um Estado Social isso é uma opção nossa... Na cara do Hans li imediatamente um “Meu Deus dai-me paciência”. Com toda a calma disse: Pede-me outra imperial por favor, tu secas-me a garganta... eu já te explico o que é o Estado Social da tua Troika.

(continua)

sexta-feira, dezembro 07, 2012

Por que há pobres?


(continuação da conversa com o Hans; aqui ele começa a explicar porque é que a sociedade ocidental tem a estrutura que tem e como evolui)
aqui

Então queres saber porque é que a Alemanha está tão empenhada neste ataque aos países do Sul... - O Hans suspendeu o que ia a dizer; os seus olhos cinzentos imobilizaram-se, apontando ao longe por sobre o meu ombro direito; durante uns segundos o tempo parou, como se o Hans fosse um robot que tivesse ficado sem energia - Não, espera, tenho de começar por esclarecer uma coisa que podes não saber. - Pelos vistos, foi activada a energia de reserva, fantasiei… Espero em silêncio.

As pessoas que não dedicaram especial atenção às questões económicas estão convencidas de que a economia liberal se auto-equilibra  pois que quem produz precisa de consumidores e por isso a existência de pobres seria contrário aos interesses de quem produz. O Hans especou, a olhar para mim atentamente. Admiro-me: E não é? Bem sei que num sistema competitivo as empresas estão sempre a lutar pelo máximo lucro, mas o empobrecimento das pessoas, o crescimento desenfreado da desigualdade é contrário aos interesses de quem produz, dos empresários, dos ricos, embora muitos pareçam não perceber isso.

Um sorriso varre a cara do Hans. Um sorriso meio trocista, meio triste. Fiquei intrigado.
 Estás muito enganado, tal como a generalidade das pessoas. - Inspirou fundo, preparando o esclarecimento, enquanto eu sentia um ar aparvalhado a colar-se à minha cara. - O grande equívoco é pensar que o consumo depende do número de consumidores. Não é verdade. O consumo depende da riqueza dos consumidores. Da riqueza total, não interessa a sua distribuição.

Não interessa? Como assim? Há um limite para o consumo individual….
 Estás enganado. Vamos ver exemplos. Carros por exemplo. Mudas de carro de quanto em quanto tempo?
Bem, eu sou um caso especial… o meu carro anterior durou uns 16 anos … este tem 10 anos…
 E está velho? - interrompeu o Hans.
 Não, nada – entusiasmei-me – está como novo. Tirando uns arranhões é claro.
 Qualquer carro funciona sem problemas uma dúzia de anos ou mais; no entanto, os teus colegas, amigos, familiares, fazem o mesmo que tu?
 Não – assenti – quase toda a gente muda de carro de 4 em 4 anos…
 Achas que isso é necessário?
 Claro que não!
 Pois não. As pessoas mudam de carro porque têm dinheiro para isso; e porque é criada uma pressão social que os faz sentir essa necessidade – uma necessidade meramente psicológica. Ou seja, tanto faz ter uma população onde a riqueza está distribuída por igual e compra carro novo de 8 em 8 anos ou concentrar a riqueza em metade da população e convencê-la a comprar carro todos os 4 anos.

Sim, o consumo é o mesmo … mas isso não deixa deter um limite, não estou a imaginar as pessoas a mudarem de carro de 2 em 2 anos, não é?
 Não estás? - O robot tornou-se subitamente humano, o Hans deitou a cabeça para trás e soltou uma sonora gargalhada - Muita gente nos EUA, por exemplo, muda de carro todos os anos, não é de 2 em 2 anos!!! Mas não fica por aí, alguns coleccionam carros, é um para a estrada, outro para a cidade, um para cada filho, outro para férias, pois tem de ser grande… e também há que acertar a cor do carro com a toilette  não é verdade? Afinal, o carro não é mesmo que um par de sapatos?? Não serve para ir de um sítio para outro? A mesma razão que leva as pessoas a terem vários pares de sapatos aplica-se aos carros, haja dinheiro para isso!

Fiquei siderado. Nunca me tinha ocorrido tal. Mudar carro de 4 em 4 anos já me parecia uma coisa ridícula, mudar de carro como quem muda de sapatos parecia-me surrealista; mas ele tinha razão…

Portanto, já viste quanto se pode concentrar a riqueza, sem que isso afete minimamente o consumo. Ouvia o Hans ao longe… a minha cabeça ainda estava atordoada com a ideia de as pessoas usarem carros como se fossem sapatos… claro que a ideia de as pessoas terem vários pares de sapatos também deve fazer confusão às pessoas que dantes só tinham um… e o outro para a missa… lembrei-me então dos telemóveis, como toda a gente que conheço muda constantemente de telemóvel... mais de 6 meses com o mesmo já é record... Mas vejo que o Hans tem razão, o consumo depende da riqueza total, não da sua distribuição. 
Ok, concordo contigo – digo, saindo do meu torpor meditativo. - Tanto faz que a riqueza esteja concentrada ou distribuída para efeitos do consumo, mas o que é que tiras daí?

Ahhh – os olhos do Hans abriram-se a acompanhar um largo sorriso – é que agora há o outro lado da equação!!!

Outro lado?
 Sim. O que interessa não é o consumo, é o lucro, a relação entre o preço de venda e de custo. O outro lado da equação é o custo de produção - os olhos abriram-se ainda mais, como se estivesse a revelar um segredo crucial – repara, para minimizar o custo da produção, o que é buscam constantemente as empresas?
 Mão-de-obra barata…- arrisquei.
 Exactamente! Agora diz-me qual é a distribuição de riqueza que maximiza o lucro? É a distribuição por igual?

Senti-me um aluno mal preparado a enfrentar o examinador numa prova oral - Não, não é a distribuição por igual, é preferível, numa ótica de lucro, ter a riqueza concentrada numa parte da população e a restante ser pobre para fornecer mão-de-obra barata.

E-xa-ta-men-te!– exultou o Hans - A sociedade da economia liberal é uma sociedade que começa por ser igual e depois divide-se em 3 classes: os ricos, a classe média e os pobres.

Fez-se-me luz.- Então é por isso, exclamei; a sociedade começou por duas classes, senhores e plebe; quando começou o comércio, o consumo, estratificou-se em 3 classes porque é o modelo que melhor serve os ricos!

Bem, ainda não te disse tudo – o Hans fez um sinal com a mão, como quem diz “acalma-te” - A concentração da riqueza tem ainda outra consequência.
 Outra? Não estou a ver...
 É o seguinte: as pessoas querem comprar coisas tão caras quanto possível; compram sempre o carro mais caro que podem, não é verdade?
 O carro, o telemóvel, a viagem de férias... tudo!
 Exacto. Então a concentração de riqueza abre mercado para produtos de luxo, produtos de preço exorbitantes... que geram lucros exorbitantes. Quanto maior a concentração de riqueza, maior a diversidade de produtos que se podem produzir e maiores as margens de lucro. Os ricos geram entre si uma economia própria, que se sobrepõe à restante economia. Isto tem uma consequência: retira peso económico à classe média. A indústria automóvel não precisa de produzir carros de gama baixa, pode deixar isso para os chineses, o que dá dinheiro são os carros de gama alta, as casas de gama alta, a moda de gama alta, etc.

Queres dizer que a classe média pode desaparecer? Ficarem só duas classes, a dos muito ricos e dos pobres?
 Admirado? É essa a tendência clara em vários países, nomeadamente EUA, Canadá e Inglaterra e Austrália. Não conheces o famoso documento do Citygroup sobre a Plutonomia?
 Plutonomia? Nunca ouvi tal...
 Nunca ouviste tal? Esse documento é talvez o documento mais importante que já se fez sobre a nossa sociedade! – um riso de satisfação explodiu na face do Hans. – É um documento do Citygroup a aconselhar os seus clientes a investirem nas empresas que produzem artigos para ricos; na verdade, não diz nada que não se saiba, ou seja, que os 10% mais ricos representam mais de metade da economia, que o conceito de consumidor médio já não tem interesse porque são os ricos que comandam o mercado; e que será cada vez mais assim, o baixo custo da mão-de-obra assegurado pela globalização. A importância deste documento é vir de dentro do sistema, não ser uma opinião de pessoas que contestam o sistema e sempre descredibilizadas por essa razão.

Pois, não conheço...

Então não deixes de ler. Ele retrata lindamente o como e o porquê da transformação da sociedade de 3 classes em duas: Ricos e Pobres. Mas isso já é passado, a evolução da sociedade neo-liberal não acaba aí, a fase seguinte já se iniciou e isso é que é verdadeiramente dramático, muito mais do que possas imaginar. 

(continua)

segunda-feira, dezembro 03, 2012

A austeridade é só para alguns, já tinham notado?

Enquanto não vem o próximo texto do Hans, aqui fica um vídeo que serve de introdução: