- Desliga isso, já nada do que a televisão diz nos pode interessar. Tens os últimos resultados do nível de metalicidade do Sol? – perguntou, impaciente, o mais velho.
O outro baixou o som do televisor e respondeu desinteressadamente - Que interessa isso? Já passou do nível crítico, vai ser antes do próximo máximo, nem é preciso telescópio para ver as manchas ao longo de todo o equador solar...
- Desculpa, claro, é do stress. Esta espera dá-me cabo dos nervos.
- O quê, estás farto de esperar? – o mais novo, na casa dos trinta, pele morena denunciando as suas origens latinas, soltou sonora gargalhada, atirando a cabeça para trás com gosto.
Um leve sorriso descontraiu um pouco a face tensa do outro – Realmente... é um bocado ridículo... estar a desejar que aconteça...
O jovem ficou então sério – Estamos mesmo decididos, não é verdade? – perguntou com uma voz saída do fundo dos pulmões e da alma também.
- Eu estou. Este observatório tinha por finalidade descobrir isto atempadamente; como chefe dele, estou como o comandante de um navio que se afunda. A tua decisão é que não me parece muito racional.
- Mas é, podes crer... embora... – riu-se novamente – embora nós sejamos homens de fé e não de razão! – outra sonora gargalhada rematou a frase. Mas curta; subitamente sério, o jovem continuou – quero testemunhar o que vai acontecer, quero estar nas mesmas condições de toda a gente que vai sofrer isto na pele. Se o fizer, e se sobreviver, poderei ajudar. Agora, se for lá para baixo com os outros e sair do abrigo depois da explosão, qual será a minha moral para enfrentar as pessoas? Dirão: sabias que isto ia acontecer e não nos avisaste?
- Os grandes líderes não são da tua opinião... estas vídeo-conferências deles... percebe-se que estão a fazê-las de abrigos... há mais de um mês que estão dentro de abrigos... os seus assessores devem ter concluído que avisar a humanidade iria causar mais pânico e mais estragos do que a própria explosão... optaram por continuar a culpar o dióxido de carbono; assim, depois podem dizer que não sabiam de nada...
- Pois, conclusão muito cómoda para eles.
- Não os podemos criticar pois não? A opção do Papa não foi, no fundo, a mesma?
- Sei lá... preferiu apoiar esses grupos que anunciam que a cólera de Deus se vai abater sobre os infiéis e os pecadores... Assim, depois, pode dizer que a Igreja bem avisou que o braço de Deus iria punir a humanidade – o braço do jovem moveu-se no ar mas conteve-se no momento de bater no braço da cadeira.
- Parece cruel, mas isso pode garantir a continuidade da Igreja após a catástrofe. E as pessoas vão precisar mais do que nunca de acreditar num Deus. Os sobreviventes vão pensar que foram eleitos por Deus para serem salvos, e essa fé dar-lhes-á forças... e bem irão precisar delas...
- Talvez tenhas razão mas eu não sou político, sou um cientista jesuíta.
Os dois homens calaram-se. Os olhares estavam fixos no écran, onde imagens de incêndios, fome e conflitos se sucediam. Finalmente, o chefe quebrou o silêncio.
- Esta estupidez do aquecimento global e do dióxido de carbono... comentou entre-dentes.
- Realmente – concordou o jovem – como é possível um disparate destes ter-se mantido tanto tempo! Combater o frágil dióxido de carbono, o gás vital da vida, como é possível tal nível de imbecilidade!!! – agitou-se, tinha ali um tema que lhe permitia dar algum escape à sua adrenalina de jovem. O mais velho já sabia o que se seguiria, e procurou acalmá-lo – Foram os interesses, não te exaltes, interessava a toda a gente, os governos criaram novas taxas, novas indústrias floresceram, os ecologistas ganharam protagonismo, as pessoas tinham uma explicação para tudo o que corria mal e a quem culpar... os ricos ficaram mais ricos, e a culpa foi para toda a gente e para o dióxido de carbono...
-... pois, e os cientistas que apoiavam a teoria ganhavam fundos – acrescentou inconformado o jovem jesuíta.
- O financiamento sempre foi o grande problema da Ciência.
- A Academia Linceana já foi fundada por causa disso... acrescentou o jovem com um ar tão longínquo como a Academia Linceana. Subitamente agitou-se - Eu estava a esquecer-me de algo que te quero dizer a propósito da tua decisão de “ires ao fundo com o navio”. Tu não tens a minha idade, dificilmente sobreviverás, não vejo a utilidade da tua decisão. E tu não te podes considerar responsável por só recentemente termos descoberto o fenómeno das expulsões estelares. Há que séculos que tentamos descobri-lo! Para isso é o Vaticano apoiou o Copérnico e o Galileu, para isso é que tem a maior colecção de meteoros do Mundo, para isso é que tem este observatório no Monte Graham, um dos melhores observatórios ópticos do Mundo, como já o eram o de Tucson, o do Castelo Gandolfo e anteriores. Há mais de mil anos que andamos a tentar entender a “personalidade de Deus”, como eufemisticamente dizemos. Ou seja, que andamos a tentar entender que fenómeno é este de que falam as escrituras e que as pessoas chamam de “fim do mundo”. Não és tu, ou eu, ou qualquer um de nós o responsável de o não termos conseguido, fizemos tudo o que pudemos. Aliás, não está escrito que ninguém sabe quando ocorrerá, nem o Filho? Se o tivéssemos descoberto estaríamos a contrariar o que está escrito!
- Deve ser por isso que o Vaticano já anda há bastante tempo a divulgar a ideia de que o braço de Deus vai escaqueirar isto tudo... ou não acreditava que descobríssemos, ou já sabia doutras fontes, ou jogou pelo seguro...
- Isso é bem visto... desde Fátima, não é?
- Pois, ouve – com ar calmo e seguro pôs a mão sobre o braço do jovem, tentando transmitir pelo toque a certeza que o animava - eu entendo a tua visão de homem de Fé e confiante numa Sabedoria Superior. Mas eu sou obrigado a ter uma visão mais pragmática. Era nosso objectivo descobrir a tempo. Cabe-me a mim a última responsabilidade e seria impensável reservar-me uma sorte diferente da das outras pessoas.
- Agora está tu a ser romântico em vez de pragmático. Encontras justificações para os responsáveis políticos safarem a sua pele mas não as queres para ti. Afinal, mesmo que nós não o tenhamos descoberto a tempo, houve quem o fizesse, não te esqueças...
- Sim, mas ele deu um passo grande demais para a ciência, que se move em passinhos curtos. Mas nós, que não temos as limitações da Ciência, que sabíamos do fenómeno, deveríamos tê-lo entendido. Acho que no fundo, ao fim de tantos séculos de pesquisa, já duvidávamos que o fenómeno pudesse voltar a acontecer...
Os dois homens mergulharam em silêncio profundo. O jovem ainda ruminou – pois, mas a ciência também sabia que existe um fenómeno que de vez em quando causa extinções maciças e desde o fim do século XX que se sabe que não é um meteoro nem é a actividade vulcânica... deveriam ter prestado mais atenção ao assunto...
O silêncio envolveu de novo os dois homens. O écran mostrava imagens da conferência de líderes, que os dois olhavam sem ouvir.
- O Sol já se pôs – comentou com ar casual o jovem – os outros devem estar a aparecer.
- Sim – concordou num sopro o velho jesuíta, quase sem mover os lábios, os olhos nas imagens do écran, o olhar muito distante. De repente disparou – tu ainda tens aquela ideia de que estas explosões determinam um salto evolutivo?
- Claro! – o jovem sorriu-se – tudo isto são dores de parto. A seguir virá a próxima geração de humanos. Isso também está escrito... homem de pouca fé!!!
Um ligeiro sorriso iluminou suavemente a face cansada do mais velho. Talvez tivesse razão, talvez tivesse de ser assim...